o-vicio-da-inconstitucionalidade

O Vício da inconstitucionalidade

  • Por:WBA

A grundnorm é o espelho basilar de toda a legislação. É assim que Kelsen estrutura todo o seu pensamento para criar sua teoria pura do direito. A norma fundamental, que aqui reduzo à compreensão de ser Constituição de um país e por isso enquadrar a ideia kelseniana de uma teoria geral e universal do direito dentro do nosso sistema jurídico, seria o cimo desse universo de controle social e a barreira impeditiva qualquer tentativa de avanço perquiridor da existência de fatores externos impurificadores dessa ciência perfeita.

Tudo aquilo que viesse em desatenção a essa norma básica estaria viciado, ou, numa linguagem conceitual do direito, seria inconstitucional. Esse confronto hierárquico de normas, por atingir o sistema jurídico naquilo que ele tinha de mais racional e fundamental, deveria ser afastado, desconhecido, pois lei não era.

O vício da inconstitucionalidade assim entendido esteve muito presente em nosso direito que, por decorrências políticas, procurou fechar em constituições extensas toda a vida social e estrutural do País. Dessa forma, calcadas na idéia do direito autóctone, perfeito científico, tipicamente de bases positivas, é que tanto doutrina como a jurisprudência catalogaram tudo aquilo que surgisse em desacordo com o que estava posto Constituição de inconstitucional. Era a concepção típica do pensamento kelseniano de isolamento do direito para sua purificação como ciência e de fortalecimento do Estado, cuja paternidade não se lhe discutia.

Embora a atual Constituição tenha se mantido extensa, com a presença do Estado em larga parcela da vida nacional, constata-se uma nova ideologia política em cena de perceptível retraimento desse mesmo Estado sob o discurso de perfeita suficiência da sociedade de se auto-regulamentar. Mudou-se, dessa forma, todo um contexto fático e social que deixou aquilo que deveria ser um ordenamento calcado na realidade apenas um ordenamento. Em decorrência desse evidente descompasso, seria essa nova postura política, naquilo que confrontasse com algum princípio constitucional, inconstitucional? Na ótica da eminência do direito positivo, a resposta seria afirmativa. Todavia, e se essa guinada de rumo trouxer para a sociedade aquilo que ela tanto anseia, como por exemplo, a redução da inflação ou o maior poder aquisitivo dos salários, será que lá adiante poder-se-ia invocar o vício da inconstitucionalidade que aqui ficou? Como entendo que a Constituição não se exaure em si mesma e que sua estrutura deve ser dinâmica como o próprio organismo que a criou, o vício aparentemente inconstitucional foi socialmente derrogado, competindo ao legislador adaptá-lo aos novos tempos.

Emerge na estrutura do direito a concepção de existência do componente valorativo sociedade e que, portanto, não se pode mais traçar parâmetros legais, tendo apenas como componentes fixos o Estado e o indivíduo, mesmo para o pensamento mais estatizante da ciência jurídica. Todavia, como admito que o fim único do direito é a sociedade, que o cria através do processo legislativo ou não, não entendo que a Constituição Federal, como uma peça de direito, possa ser tida como absolutamente inflexível a impor cumprimento de princípios socialmente não aceitos. E como o mandatário impor regras ao mandante.
A teoria de que tudo deve girar em função da grundnorm é como a ideia do mundo sustentado por um elefante que não se permite às demais normas que se perguntem o que é que sustenta o elefante, como satiriza Dermys Lloyd.

Por tudo, tenho que a inconstitucionalidade como vício não se restringe absolutamente à dissonância do novo preceito legal com a Constituição Federal, porém à aceitação ou não desse preceito pela sociedade. A aceitação é a ratificação de sua validade. É a constitucionalização fática de um novo princípio e por consequência a derrogação social do formalmente positivado.

 


wellington pacheco barros advogado
Wellington Pacheco Barros, OAB/RS Nº 6.103
Professor de pós-graduação e desembargador aposentado do TJ/RS, advogado e autor de obras jurídicas.
Postado em: Direito, Publicações, wba