O Estado Legislador

O Estado Legislador

  • Por:WBA

Num levantamento apenas superficial, já nos deparamos com um dado preocupante: no Brasil, mais de 500 mil leis foram editadas desde sua independência, sendo que, destas, milhares ainda continuam em plena vigência (aqui se entendendo lei como toda ordem de conduta positivada emanada do Estado em qualquer grau de competência). Para aquele que se interessa pelo estudo sistemático do Direito, contudo, surge um questionamento natural: quais as causas que levam o Estado brasileiro a legislar com tamanha abundância e em todos os níveis, criando um cipoal de mandos estatais inatingível mesmo para aquele diretamente interessado em seu conhecimento porque operador do Direito? E de um outro prisma, como fazer o homem médio social entender que tudo o que é legislado, direta ou indiretamente, lhe diz respeito e impõe cumprimento?

Naturalmente que uma resposta a tal questão deveria desembocar numa prévia dissertação sobre a importância das várias escolas e doutrinas que procuraram definir a concepção ideal do Estado; em verdade, muitas delas calcadas em realidades nacionais e que quando transportadas ou sofreram profundas modificações ou redundaram em completo fracasso. O que pretendo, no limite do tema, do espaço e de forma menos doutrinal possível, é encontrar justificativas para a existência de tantas leis no País.

A percepção que logo se me apresenta é encontrada no estudo da realidade histórico-política nacional e especificamente no isolamento do trinômio indivíduo- sociedade-estado, elementos fundamentais na estrutura de qualquer nação, e aí vamos detectar a clara opção brasileira de enfatizar acima dos dois outros elementos a essencialidade do Estado como instrumento necessário e tutelador da vida do indivíduo e da sociedade. Em decorrência desse fator, a lei se transformou no instrumento pelo qual ele, Estado, pôde exercitar o seu domínio sobre as ações individuais e sociais, negando, na outra ponta, a possibilidade de manifestações alheias aos seus ditames, numa declaração de incapacidade ou capacidade relativa desses outros elementos estruturais da nação de se autogerirem. Evidentemente que por trás dessa eleição existe toda uma ideologia ditada por aqueles que vivificam o Estado. Nesta abordagem, apenas me limito ao conceito impessoal e jurídico de Estado.

Delineada a causa fundamental para a exuberância legislativa estatal, surgem como causas consequentes a necessidade de que sua intervenção abrangente atinja toda uma gama variada de estratos sociais, de cultura, raça, costumes e até mesmo de língua para que sua presença possa ser conhecida na extensa área do território nacional. Com essa ideia presente é que surgiu o Estado abundantemente legislador impondo regras de conduta sobre tudo e sobre todos. Tamanha foi sua influência que chegou a ponto de causar dependência em atividades comumente compreendidas de relações meramente pessoais; e também de se observar que, na possibilidade de seu retraimento, notar-se um certo tremor por reverência longamente adquirida ou medo do desconhecido.

É inegável que nenhuma nação existe sem que exista uma estrutura de apoio que a exteriorize, e esse organismo é o Estado, mesmo que seja apenas para se auto-administrar. Também é inegável que, além dos interesses decorrentes de sua própria existência, surgem conflitos emergentes do próprio viver do indivíduo e de sua coletividade que necessitam de uma tutela maior que possa resolvê-los. Por conseguinte, o Estado e as suas leis são necessárias, porém, é no estabelecimento do limite entre estas necessidades que se deve traçar a linha divisória, certamente de difícil demarcação, para que não se passe de um estado democrático para um estado totalitário, onde a sociedade e o indivíduo se subsumem no interesse do Estado.

A presença do Estado e de suas leis de forma a alcançar a quase universalidade das relações humanas é ideal inatingível. Primeiro, porque muitas dessas relações surgem e se extinguem à revelia do Estado. Segundo, porque elas são tão grandiosas e imprevisíveis que se torna impossível retê-las em ordenamentos estáticos. E terceiro, porque as leis, quando em demasia, até pelas naturais contradições que provocam, só diminuem a função de quem as edita, tornando o Direito, visto exclusivamente por sua ótica, desacreditado como regra de comportamento geral.

 


wellington pacheco barros advogado
Wellington Pacheco Barros, OAB/RS Nº 6.103
Professor de pós-graduação e desembargador aposentado do TJ/RS, advogado e autor de obras jurídicas.
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