A circunstância temporal do Direito

A circunstância temporal do Direito

  • Por:WBA

Uma das grandes dificuldades para quem opera o Direito na condição de juiz resoluto do conflito efetivado (a realidade viva dessa ciência), ou quem na ponta inicial procura ministrar ensinamentos desse importante ramo do conhecimento humano, é a de oferecer explicações e fundamentos razoáveis que por si imponham a aceitação do que foi sustentado quando se procura adaptar ao caso em julgamento ou em exemplificação à norma mais aproximada.

A edificação exegética que se procura construir é digna de qualquer engenharia metafísica. Utiliza-se todo um raciocínio de lógica em que premissas se encontram e se concluem. A procura do legal para justificar a conclusão é intensa e extenuante, e importa, não raramente, num encadeamento de princípios preordenados. Toda essa operação mecânica é utilizada para que não se saia do sistema fechado em que se procurou prender o Direito e que tem como primada a imutabilidade de seus preceitos, isto é, de que regras de reconhecida aceitação no passado são dogmas plenamente aplicáveis ao tempo presente, bastando que se encontrem dentro desse universo as variáveis para a operação interpretativa. Essa adaptação inclusive já ensejou o surgimento de uma ciência propedêutica auxiliar do direito, para explicar o próprio Direito que é a hermenêutica jurídica.

Dessa forma, interpreta-se tudo para que se possibilite a adaptação dos novos conflitos aos preceitos antigos sempre em nome de uma fleumática e insondável segurança jurídica, não se possibilitando questionar se essa segurança efetivamente importa em que o Direito alcance a sua natural finalidade. Assim, interpretam-se os consequentes sem uma análise mais profunda dos antecedentes; constroem-se paredes sem um prequestionamento da segurança do alicerce; fecha-se o Direito em regras matemáticas e se olvida o fundamento básico de sua própria existência, que é de ser ele um meio para se alcançar o ideal de justiça, o elemento finalista de sua própria vida de ciência social.

Porém, muito disso está na forma de aprendizagem do Direito. O ensino jurídico calcado na tão-só interpretação do existente, na decodificação de leis e do law in book robotiza o estudante e o predispõe, não raramente, para resoluções de operações jurídicas simples como: se a lei diz e o conflito corresponde ao que a lei diz, aplica-se a lei. Todavia, não se lhe oferece resposta satisfatória do que a lei não diz ou o faz de forma parcial ou equivocada. E, dessa forma, o estudante passa pela vida acadêmica com a aceitação da certeza de que o Direito é uma proposição matemática e se caracteriza na interpretação literal do “dever ser”, sem qualquer resposta do porquê o direito ensinado não corresponder ao direito efetivamente praticado. E com esse instrumental se prepara um técnico e se lhe outorga habilitação para que ele venha a, no exercício profissional, dolorosamente, reconhecer que muito daquilo que lhe foi ensinado pouco ou quase nada tem a ver com o que é praticado. E porque não lhe foi ensinada outra perspectiva do Direito, teima em aplicar o aprendido como um Don Quixote enfrentando o moinho. A perspectiva do Direito em nível de ensino tem que ser mudada para que o estudante conheça o passado, mas com muito mais importância possa encontrar-se na realidade do Direito presente.

Na ponta final, no front do Direito, está a jurisprudência, não porque seja a voz do Judiciário, mas porque o Direito que ela discute emana do calor do conflito e reflete a realidade em discussão, e não a perspectiva fria e hipotética da lei, pois é a jurisprudência que melhor tem demonstrado a temporariedade do Direito. Esse Direito realizado é que tem forçado as modificações jurídicas mais sensíveis nos últimos tempos e com isso tem aberto profundas brechas na muralha do direito matemático. O sentimento de justiça e a aceitação de que a norma como tal insatisfaz, ou até mesmo prejudica, é que leva a jurisprudência a forçar mudanças com redefinição de dogmas. Questiona-se se essa força da jurisprudência não invade a função legislativa e se responde que, hoje, a tripartidação do poder maior é mais clássica do que prática, porque o Legislativo também julga, e o Executivo legisla. ação da jurisprudência, em verdade, é a de fazer aqui. o que o legislador por impossibilidade natural não pode fazer: decidir no front do conflito em que se discutem valores não previamente regulados, mas que precisam ser resolvidos.

O Direito precisa ser temporal como a sociedade, pois é seu produto. Sua existência é a decorrência natural da vida social, e esta não é estável. Isolá-lo em termos rígidos de uma realidade passada é impor-lhe amarras e possibilitar que se questione sua validade e eficácia para resolver conflitos de uma realidade presente. Como instituição e regra de controle social, seus ditames deverão corresponder ao anseio geral. Por sua própria composição, esse anseio é dinâmico, pois engloba valores econômicos e políticos, fatores por si só altamente mutáveis.

O Direito, portanto, tem que ser temporal para se adequar às mudanças sociais. Se não o fizer, será por elas atropelado. Veja-se a que foi reduzido o direito positivo da Alemanha Oriental por força do querer de seu povo.

 


wellington pacheco barros advogado
Wellington Pacheco Barros, OAB/RS Nº 6.103
Professor de pós-graduação e desembargador aposentado do TJ/RS, advogado e autor de obras jurídicas.
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