Suporte Jurídico Especializado para Advogados do Agronegócio
11 de julho de 2024Da nulidade na novação de crédito rural
11 de julho de 2024Sumário
1 INTRODUÇÃO
2 DEFESA AGROPECUÁRIA BRASILEIRA
3 DO AUTOCONTROLE PREVISTO NA LEI Nº 14.515/2022
4 DOS PROGRAMAS DE AUTOCONTROLE E A FISCALIZAÇÃO
5 DAS PERSPECTIVAS DA IMPLEMENTAÇÃO DO AUTOCONTROLE
6 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo traz um breve panorama acerca das principais mudanças trazidas pela Lei nº 14.515/2022, que substituiu o modelo tradicional de fiscalização agropecuária por um modelo de autocontrole. Para tanto, previamente, o artigo conceituará a defesa agropecuária brasileira. Após, será analisado o texto da legislação, especialmente os programas de autocontrole, abordando os seus requisitos principais: definição de objetivos e metas; identificação de riscos; avaliação dos riscos; implementação de medidas de controle; monitoramento e avaliação das medidas de controle.
Além disso, percorrerá pelas mudanças que a mencionada lei trouxe para o modelo de fiscalização agropecuária no Brasil, especialmente quanto a substituição do modelo tradicional de fiscalização, baseado na inspeção, por um modelo de autocontrole, baseado na confiança, o qual provoca profunda reflexão no meio empresarial, governamental e jurídico.
Antes da nova legislação, o autocontrole já era previsto nos regulamentos das distintas áreas de atuação da Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA), ligada ao Ministério da Agricultura. O denominado controle rastreável dos estabelecimentos regulados defesa agropecuária brasileira sobre seus processos de fabricação, utilizando ferramentas de controle de qualidade, a fim de alcançar as especificações de qualidade e segurança dos produtos. Exemplos são o Decreto nº 5.741/06, que dispõe sobre o Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária (SUASA) (Art. 10, III e 85, Parágrafo Único); Decreto nº 6.871/09, que dispõe sobre a padronização, a classificação, o registro, a inspeção, a produção e a fiscalização de bebidas (Art. 84, §3º); Decreto nº 9.013/17, que dispõe sobre a inspeção industrial e sanitária de produtos de origem animal (Art. 74, §1º); Circulares nº 175 e nº 176/2005, 03 e 04/2010 – bovinos; Circular nº 294/2006 – aves; Circular nº 24/2009 – leite e mel; Circular nº 25/2009 – pescado; Circular nº 04/2009 – ovos; Circular nº 12/2010 – aves e suínos; Decreto nº 5.053/04 que aprova o regulamento de fiscalização de produtos de uso veterinário e dos estabelecimentos que os fabriquem ou comerciem (Art. 46-A); Decreto nº 6.296/07 – alimentação animal (Art. 47, §1º e Art. 49); Decreto nº 4.074/02 – agrotóxicos (Arts. 68 e 69); Decreto nº 5.153/04 que aprova o Regulamento da Lei nº 10.711, de 5 de agosto de 2003, que dispõe sobre o Sistema Nacional de Sementes e Mudas (SNSM) (Art. 37); Decreto 4.954/04 – fertilizantes, inoculantes e corretivos (Art. 57, §3º).
Apesar das normas de autocontrole presentes na legislação e regulamentos da defesa agropecuária brasileira, foi após a posse da Ministra Tereza Cristina no Ministério da Agricultura (MAPA) que o tema ganhou notoriedade e um estudo através da criação do Comitê Técnico Permanente de Programas de Autocontrole do MAPA. O referido Comitê trabalhou, primeiramente, para uniformizar parâmetros básicos do que seria autocontrole no âmbito da Defesa Agropecuária, sugerindo a sua obrigatoriedade na adoção de programas de autocontrole de forma transversal em todas as áreas da defesa agropecuária e a instituição de um programa de incentivo à conformidade em defesa agropecuária, o que acabou acontecendo no texto final da Lei nº 14.515/2022.
A reforma do modelo de fiscalização agropecuária é um passo importante para a modernização do setor agropecuário brasileiro. O objetivo do modelo de autocontrole é inserir uma série de vantagens, como: maior eficiência da fiscalização; redução de custos; e melhoria da confiança entre o setor público e privado. Contudo, também apresenta alguns desafios, como: garantia da conformidade com as normas e regulamentos; controle da qualidade dos programas de autocontrole; e redução da capacidade de resposta a emergências sanitárias.
Por final, será realizada uma abordagem acerca da reforma do modelo de fiscalização agropecuária, sendo fundamental para o seu sucesso a capacidade do Estado de superar os desafios e implementar mecanismos eficazes de controle e monitoramento, mas exigirá principalmente a responsabilidade de todos os envolvidos na cadeia.
2 DA DEFESA AGROPECUÁRIA BRASILEIRA
A defesa agropecuária é conceituada no artigo 3º, da Lei nº 14.515/2022, como sendo a:
[…] estrutura constituída de normas e ações que integram sistemas públicos e privados, destinada à preservação ou à melhoria da saúde animal, da sanidade vegetal e da inocuidade, da identidade, da qualidade e da segurança de alimentos, insumos e demais produtos agropecuários.
Complementando a conceituação da legislação, pode-se afirmar que a defesa agropecuária está ligada à segurança da saúde humana, animal e vegetal, bem como o meio ambiente, da introdução, disseminação e reintrodução de pragas e doenças, e da comercialização de produtos agropecuários inseguros.
Tania Maria de Paula Lyra afirma que defesa agropecuária é proteção da agropecuária, acrescentando que:
Esta proteção decorre da prevenção de doenças dos animais e das plantas, que interferem na produção de alimentos e ocasionam barreiras às exportações de animais vivos, vegetais e respectivos produtos derivados. O processo tem início no controle dos insumos utilizados na produção agrícola e pecuária e culmina na Inspeção do produto final – o alimento oferecido aos consumidores.
O controle dos insumos e as inspeções, em síntese, são realizadas por órgãos públicos e privados, em âmbito federal, estadual e municipal. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento é o órgão federal responsável pela coordenação da defesa agropecuária no Brasil.
As principais ações de defesa agropecuária brasileira incluem: a) Vigilância sanitária e fitossanitária: monitoramento da presença de pragas e doenças, bem como da aplicação de defensivos agrícolas; b) Inspeção agropecuária: verificação do cumprimento das normas sanitárias e fitossanitárias na produção, armazenamento, transporte e comercialização de produtos agropecuários; c) Controle e erradicação de pragas e doenças: adoção de medidas para eliminar ou reduzir a presença de pragas e doenças; d) Educação sanitária e fitossanitária: promoção de ações de conscientização da população sobre a importância da defesa agropecuária.
A defesa agropecuária é essencial para garantir a segurança alimentar e a sanidade animal e vegetal do Brasil. Ela contribui com a proteção da saúde humana, evitando a propagação de doenças transmitidas por alimentos ou animais, e para a proteção da saúde animal, evitando a perda de produtividade e a disseminação de doenças entre animais.
A defesa agropecuária também é importante para a proteção do meio ambiente, evitando-se a introdução e disseminação de pragas e doenças que possam causar danos à biodiversidade.
Atualmente são dezoito setores principais regulados pela defesa agropecuária brasileira: a) fertilizantes, corretivos e inoculantes; b) sementes e mudas; c) defensivos agrícolas; d) produtos de uso veterinário; e) alimentos para animais; f) material genético animal; g) sanidade vegetal; h) saúde animal; i) produtos de origem animal; j) bebidas alcoólicas e não alcoólicas; k) qualidade vegetal; l) fiscalização de origem; m) proteção de cultivares; registro genealógico; aviação agrícola; produção orgânica; tratamento fitossanitários e credenciamento de laboratórios. Além desses, ainda regula a certificação das exportações e fiscalização das importações.
A atuação nos setores acima citados exige que a defesa agropecuária brasileira esteja em constante evolução, buscando novas tecnologias e estratégias para melhorar a eficiência e a eficácia das ações de proteção. Igualmente, o avanço contínuo também é necessário em razão dos acordos sanitários e novas pesquisas que visam aperfeiçoar a cadeia.
Nesse sentido, o sucesso do agronegócio brasileiro depende e está diretamente ligado com o êxito da defesa agropecuária. A adoção de boas práticas agropecuárias, incluindo as medidas de defesa agropecuária, permite que o Brasil acesse mercados internacionais exigentes.
3 DO AUTOCONTROLE PREVISTO NA LEI Nº 14.515/2022
Em 29 de dezembro de 2022 foi sancionada a Lei nº 14.515, que dispõe sobre os programas de autocontrole dos agentes privados regulados pela defesa agropecuária e sobre a organização e os procedimentos aplicados pela defesa agropecuária aos agentes das cadeias produtivas do setor agropecuário; institui o Programa de Incentivo à Conformidade em Defesa Agropecuária, a Comissão Especial de Recursos de Defesa Agropecuária e o Programa de Vigilância em Defesa Agropecuária para Fronteiras Internacionais (Vigifronteiras).
Conforme verifica-se na mensagem firmada pela então Ministra da Agricultura, Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, quando da apresentação do Projeto de Lei nº 1.293/2021, a justificativa do texto proposto e aprovado posteriormente ressaltava a necessidade de:
órgãos públicos com a função de polícia administrativa sanitária passem a atuar de forma mais “inteligente”, com base em fatores de risco, buscando atingir índices de maior eficiência no desempenho das suas atribuições para fins de atendimento dos objetivos esperados pela sociedade.
Narrou que o crescimento do agronegócio brasileiro impôs ao Estado uma demanda na execução das práticas de controle e fiscalização agropecuária, tendo óbice orçamentário a manutenção ou ampliação desses serviços, alertando que:
a persistência da incompatibilidade entre a pujança do agronegócio brasileiro e a capacidade estatal de resposta, num futuro próximo, pode, inclusive, limitar as exportações das commodities agropecuárias do País, além de precarizar a fiscalização agropecuária.
Com essas justificativas que o Governo Federal apresentou a proposta de alteração na legislação vigente para inovar a configuração ao modelo de fiscalização agropecuária, buscando o estabelecimento da obrigatoriedade de adoção de programas de autocontrole pelos agentes regulados pela legislação da defesa agropecuária; a instituição do Programa de Incentivo à Conformidade em Defesa Agropecuária para tratar da organização e dos procedimentos aplicados pela defesa agropecuária; a modernização das regras de controle sanitário do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (ex.: registro de estabelecimento agropecuários) que impactam na expedição de ato público de liberação de atividade econômica no segmento agropecuário, considerando o grau de risco sanitário envolvido; e a atualização do valor pecuniário das multas aplicadas em decorrência da constatação de infrações durante a fiscalização agropecuária, atendendo, assim, as recomendações dos Órgãos de Controle, e fortalecendo as medidas coercitivas e educativas em desfavor dos transgressores da legislação sanitária.
A introdução do autocontrole na defesa agropecuária brasileira é fundamentada na teoria da regulação responsiva estudada desde a década de 1970, tendo a referência teórica na obra de Ayres e Braithwaite, Responsive Regulation: transcending de deregulation debate, publicada em 1992. Nela, os autores arquitetam a regulação responsiva em forma de pirâmide, sendo a base integrada por meios consensuais de cumprimento do comando regulatório e o ápice representa o meio mais severo de intervenção regulatória. As medidas, brandas e severas, serão adotadas em consideração a legislação e a regulação local.
A teoria da regulação responsiva tem por missão superar o debate entre regular e desregular, especialmente posicionamentos extremos de intervenção total e ausência de necessidade de regulação estatal. Nessa lógica, a graduação da intervenção inicia pela persuasão, passando pela advertência, sanção civil, sanção penal e suspensão, tendo como última opção a cassação.
Na regulação responsiva busca-se criar um ambiente que incentive o regulado cumprir as regras, sintetizado por Marcio Iorio Aranha:
Ian Ayres e John Braithwaite propõem a regulação responsiva (responsive regulation), segundo a qual a efetividade da regulação depende da criação de regras que incentivem o regulado a voluntariamente cumpri-las, mediante um ambiente regulatório de constante diálogo entre regulador e regulado.
O início dos estudos da regulação responsiva de Ayres e Braithwaite, na década de 70, é simultâneo à compreensão de controle sanitário dos alimentos envolvendo a utilização de programas de autocontrole baseados nos princípios da Análise de Perigos e Pontos Críticos de Controle (APPCC), que é um sistema de gerenciamento de riscos à segurança dos alimentos. A sigla (em inglês é HACCP – Hazard Analysis and Critical Control Points) é resultado de trabalho conjunto da companhia Pillsbury, indústria de alimentos norte-americana, e a empresa de exploração e pesquisa espacial americana National Aeronautics and Space Administration (NASA). O conceito foi apresentado ao público pela primeira vez em 1971, mas somente em 1985 que se publicou o primeiro padrão de critério microbiológico que poderia ser aplicado à APPCC.
No Brasil, a APPCC foi mencionada pela primeira vez na Lei n° 9.712, de 1998, de regulamentação do Suasa (Brasil, 1998). Em 1997, a Portaria n° 368 instituiu a implantação das Boas Práticas de Fabricação (BPF) (MAPA, 1997) e, em 2003, a Resolução n° 10 instituiu os Procedimentos Padrão de Higiene Operacional (PPHO) (MAPA, 2003).
Com base na teoria da regulação responsiva, verifica-se que a introdução do autocontrole na defesa agropecuária brasileira não diz respeito à regulamentação, ao poder de polícia e a fiscalização dos órgãos federais, estaduais e municipais. Ou seja, importante distinguir autocontrole de auto-regulamentação, tendo em vista que não existe a previsão normativa dessa última, não tendo a nova lei não alterado nem dificultado o papel regulador do Estado.
Contudo, partindo-se da conclusão que a defesa agropecuária brasileira não consegue acompanhar e estar presente na integralidade de todas as fases da atuação da defesa agropecuária, a nova legislação instituiu a análise de risco como abordagem de ação, incorporando a prevenção e a correção de não conformidades como princípios elementares da fiscalização.
A grande novidade foi estabelecer que os agentes privados regulados pela legislação relativa à defesa agropecuária desenvolvam programas de autocontrole, os quais serão abordados no próximo tópico.
Em síntese, portanto, tem-se que a introdução do autocontrole foi a solução encontrada, a fim de tornar mais inteligente a atuação da fiscalização, com base em fatores de risco, em resposta à demanda crescente de controle e fiscalização agropecuária, incompatibilidade entre demanda e capacidade estatal, risco de limitar exportações e precarização da fiscalização.
4 DOS PROGRAMAS DE AUTOCONTROLE E A FISCALIZAÇÃO
Por meio dos programas de autocontrole que será implementada a principal mudança prevista na Lei nº 14.515/2022, qual seja, a alteração do modelo de fiscalização agropecuária no Brasil, substituindo o modelo tradicional baseado na inspeção, por um modelo de autocontrole, baseado na confiança.
Os programas de autocontrole estão previstos nos artigos 8º a 11 da nova legislação e são sistemas de gestão que devem ser desenvolvidos pelos agentes privados regulados pela legislação relativa à defesa agropecuária. Eles têm o objetivo de garantir a inocuidade, a identidade, a qualidade e a segurança dos produtos agropecuários.
É obrigatório a implementação dos programas de autocontrole, exceto aos agentes da produção primária agropecuária (agricultores, pecuaristas, apicultores, pescadores, extrativistas, etc.) e da agricultura familiar, os quais poderão aderir voluntariamente a programas de autocontrole por meio de protocolo privado de produção.
Os requisitos mínimos dos programas de autocontrole são: a) registros sistematizados e auditáveis do processo produtivo, desde a obtenção e a recepção da matéria-prima, dos ingredientes e dos insumos até a expedição do produto final; b) previsão de recolhimento de lotes, quando identificadas deficiências ou não conformidades no produto agropecuário que possam causar riscos à segurança do consumidor ou à saúde animal e à sanidade vegetal; e c) descrição dos procedimentos de autocorreção (artigo 8º da Lei nº 14.515/2022).
Salienta-se que o requisito do procedimento da autocorreção é a adoção de medidas corretivas pelo agente, diante da detecção de não conformidade, de acordo com o previsto no seu programa de autocontrole, ou por deliberação da sua área responsável pela qualidade (artigo 3º, inciso IX, da Lei nº 14.515/2022).
O setor produtivo desenvolverá manuais de orientação para elaboração e implementação de programas de autocontrole, que serão disponibilizados ao MAPA e a futura regulamentação dos programas de autocontrole deverá levar em consideração o porte dos agentes econômicos e a disponibilização pelo poder público de sistema público de informações, de forma a conferir tratamento isonômico a todos os estabelecimentos.
Os programas de autocontrole também poderão conter garantias advindas de sistemas de produção com características diferenciadas, com abrangência sobre a totalidade da cadeia produtiva, desde a produção primária agropecuária até o processamento e a expedição do produto final (artigo 9º da Lei nº 14.515/2022).
Ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento compete estabelecer os requisitos básicos necessários ao desenvolvimento dos programas de autocontrole, editar normas complementares para dispor sobre os requisitos básicos, e definir os procedimentos oficiais de verificação dos programas de autocontrole (artigo 10 da Lei nº 14.515/2022).
Por fim, o artigo 11, prevê o caso de quando o agente será responsável pelo recolhimento dos lotes quando a fiscalização agropecuária ou o programa de autocontrole identificar deficiências ou não conformidades no processo produtivo ou no produto agropecuário que possam causar riscos à segurança do consumidor ou à saúde animal e à sanidade vegetal.
Com os programas de autocontrole o agente privado facilitará a fiscalização, uma vez que criará registros sistematizados e auditáveis dos seus processos produtivos e saberá os procedimentos da sua atuação quando identificadas deficiências ou não conformidades no produto agropecuário.
Assim, a fiscalização agropecuária realizada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento e demais órgãos públicos integrantes do Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária, devem ser baseadas na análise de risco e ter como objetivo prevenir e combater riscos à saúde animal, à saúde vegetal e à segurança dos produtos agropecuários.
Ou seja, a fiscalização agropecuária passa a ter como objetivo prevenir e combater riscos, o que significa que as ações de fiscalização serão voltadas para a identificação e a correção de não conformidades antes que elas causem danos, enquanto que as ações de fiscalização poderão ser direcionadas aos agentes que apresentam maior risco.
Em suma, os programas de autocontrole permitirão a mudança de paradigma da fiscalização agropecuária, que passa a ser mais preventiva e menos repressiva, o que significa que as ações de fiscalização serão voltadas para a orientação e a conscientização dos agentes, de forma a evitar a ocorrência de irregularidades.
5 DAS PERSPECTIVAS DA IMPLEMENTAÇÃO DO AUTOCONTROLE
A evolução histórica da defesa agropecuária, iniciada ainda em 1860 com a criação da Secretaria de Estado dos Negócios da Agricultura, Comércio e Obras Públicas, passando pelos ciclos de empenho da Sociedade Nacional de Agricultura (1897), prevenção de doenças pelos imigrantes (1900), ensino e organização (1910), criação e consolidação da Organização Mundial da Saúde Animal (OIE) (1920), fortalecimento da fiscalização sanitária (1930), ênfase no controle sanitário da produção (1950), fortalecimento do MAPA (1960), ênfase na iniciativa privada (1970), ênfase na qualidade (1990) e investimento em defesa agropecuária (2000), demonstra que antes a agricultura, e hoje o agronegócio, é uma política de Estado, que vem sendo aprimorada há um bom tempo.
As perspectivas da implementação do autocontrole na defesa agropecuária brasileira passam necessariamente pela análise dos benefícios almejados e desafios que a mudança apresenta. O objetivo do modelo de autocontrole é inserir uma série de vantagens, como maior eficiência da fiscalização, redução de custos, melhoria da confiança entre o setor público e privado, a fim de incentivar a conformidade das condutas dos agentes econômicos com as diretrizes da defesa agropecuária, prevenindo e mitigando os riscos associados à defesa agropecuária, em especial aqueles relacionados com a produção agropecuária e a saúde pública.
Por outro lado, também apresenta alguns desafios, como a garantia da conformidade com as normas e regulamentos, controle da qualidade dos programas de autocontrole e redução da capacidade de resposta a emergências sanitárias.
Igualmente, considerando a obrigatoriedade dos programas de autocontrole, verifica-se que a conferência ao atendimento dos requisitos, segundo o artigo 8, §3º da legislação, poderá ser certificada por entidade de terceira parte, a critério do agente. Esse ponto exige uma dupla reflexão, se não seria mais apropriado que a certificação obrigatória ficasse sob responsabilidade da Administração Pública. Ainda, se a opção não teria de ter ficado a critério da Administração Pública, que poderia sopesar os riscos do agente em relação à segurança do consumidor ou à saúde animal e à sanidade vegetal.
Sobre a redução da capacidade de resposta a emergências sanitárias, verifica-se a drástica redução dos auditores ligados à defesa agropecuária, uma vez que em 2010 o Valor Bruto da Produção Agropecuária não passava de R$ 261 bilhões e em 2020 alcançou R$ 630 bilhões. No mesmo período, o número de auditores em atividade passou de 4.040 para aproximadamente 2.533.
A constante redução de auditores e a possibilidade de não cumprimento do programa de autocontrole pelos agentes, especialmente nos momentos de urgências na operação em razão de acontecimentos de não conformidades, também deve ser outro ponto de reflexão. Da mesma forma, os servidores são essenciais para manter o poder de polícia administrativa do MAPA, sob pena de eventual precarização na atuação.
Nesse sentido a expectativa é de o Brasil tenha o melhor serviço de defesa agropecuária do mundo, o que irá ocorrer em decorrência da capacidade de formular regras adequadas e cumpri-las, com a necessidade de seguir orientações avançadas em harmonia com os organismos internacionais, além de investir nas carreiras de profissionais, o que permitirá consolidar a gestão sistêmica.
As orientações avançadas são os maiores desafios do regulamento, o qual deverá ser editado via decreto presidencial e posteriores circulares sobre temas previamente autorizados.
Segundo Heinze, os países europeus, os Estados Unidos da América, Nova Zelandia, Austrália e outros países desenvolvidos da produção primária também utilizam o sistema de autocontrole da defesa agropecuária, o qual além de não retirar o poder dos agentes de fiscalização, é uma legislação que leva a modernidade avanço ao agronegócio brasileiro.
Obviamente que a mudança de qualquer questão geralmente é um processo precedido de resistência. Igualmente, a defesa agropecuária possui uma complexidade no inconsciente coletivo de boa parte da sociedade mundial, sendo por diversas vezes mal compreendida como restrição de liberdades de uso de produto, transporte ou mesmo de seu consumo. Aliado a isso, tem-se ainda a problemática da comunicação em defesa agropecuária, que muitas não consegue deter informações incorretas propaladas por pessoas que não possuem conhecimento científico sobre o assunto.
Dessa forma, a implementação do autocontrole na defesa agropecuária brasileira necessita de uma comunicação de qualidade, com informações apuradas em questões técnicas, evitando-se a vinculação com aspectos políticos. Essa comunicação assertiva será fundamental para desmistificar e retirar de circulação conceitos mal compreendidos, haja vista que é comum ouvir termos de autofiscalização, auto registro e autorregulamentação, os quais não estão previstos na legislação. Aliás, se estivessem afrontariam a legislação brasileira, os padrões e acordos internacionais.
6 CONCLUSÃO
A agropecuária tem por pressuposto básico a transformação de animais e plantas em utilidade, seja em alimentos, fibras, energia, paisagens, entre tantas outras coisas. Os métodos das atividades de domesticação de animais e plantas tem se aprimorado ao longo do tempo através do surgimento da defesa agropecuária com o propósito de monitorar a ocorrência de pragas e doenças de animais e vegetais, para garantir alimentos e matérias-primas seguros para o consumo humano, animal e industrial.
A defesa agropecuária precisa estar sempre alerta e em constante evolução, haja vista que necessita assegurar a preservação e a melhoria da saúde animal, da sanidade vegetal e da inocuidade, da identidade, da qualidade e da segurança de alimentos, insumos e demais produtos agropecuários, enfrentando e buscando correção aos riscos biológicos, químicos e físicos, afetados pela natureza e sociedade.
Nesse contexto a Lei nº 14.515, de 29 de dezembro de 2022, representa um avanço importante na defesa agropecuária brasileira. As alterações promovidas pela lei reforçam o papel da defesa agropecuária na proteção da saúde animal, da saúde vegetal e da segurança dos produtos agropecuários.
A instituição da análise de risco como abordagem de ação da defesa agropecuária e a adoção de princípios preventivos e corretivos na fiscalização são medidas que devem contribuir para a melhoria da eficiência e da efetividade da defesa agropecuária no Brasil.
A criação dos programas de autocontrole é uma medida importante para a promoção da segurança alimentar. Os programas de autocontrole devem contribuir para a redução de riscos de contaminação dos produtos agropecuários, pois os agentes privados serão responsáveis pela implementação de sistemas de gestão que garantam a inocuidade, a identidade, a qualidade e a segurança dos seus produtos.
A defesa agropecuária brasileira, por meio dos programas de autocontrole, está chamando os agentes de forma impositiva, pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que realiza ou participa, direta ou indiretamente, dos processos ao longo das cadeias produtivas do setor agropecuário de produção, transporte, beneficiamento, armazenamento, distribuição, comercialização, importação, exportação, trânsito nacional, trânsito internacional, aduaneiro, transformação, industrialização, diagnóstico, ensino, pesquisa, experimentação, prestação de serviços e demais processos para elevar a profissionalização e a modernização do setor, a fim de abrir os mercados ainda fechados ao país no exterior, melhorar a resposta quando necessária e transformar a defesa agropecuária brasileira na melhor do planeta.
REFERÊNCIAS
1 MACEDO, Janus Pablo Fonseca de. Comissão de Agricultura – Autocontrole nas atividades agropecuária e agroindustrial – 14/06/2021. Youtube, 14 jun. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LWP1wDe89tk. Acesso em: 19 jan. 2024.
2 ANDRADE, Antonio. Autocontrole: avanços, riscos e limitações. 31 março 2023. Disponível em: https://anffasindical.org.br/index.php/biblioteca/artigos/2514-autocontrole-avancos-riscos-e-limitacoes. Acesso em: 19 jan. 2024.
3 BRASIL. Lei nº 14.515, de 29 de dezembro de 2022. Dispõe sobre os programas de autocontrole dos agentes privados regulados pela defesa agropecuária e sobre a organização e os procedimentos aplicados pela defesa agropecuária aos agentes das cadeias produtivas do setor agropecuário; institui o Programa de Incentivo à Conformidade em Defesa Agropecuária, a Comissão Especial de Recursos de Defesa Agropecuária e o Programa de Vigilância em Defesa Agropecuária para Fronteiras Internacionais (Vigifronteiras); altera as Leis nºs 13.996, de 5 de maio de 2020, 9.972, de 25 de maio de 2000, e 8.171, de 17 de janeiro de 1991; e revoga dispositivos dos Decretos-Leis nºs 467, de 13 de fevereiro de 1969, e 917, de 7 de outubro de 1969, e das Leis nºs 6.198, de 26 de dezembro de 1974, 6.446, de 5 de outubro de 1977, 6.894, de 16 de dezembro de 1980, 7.678, de 8 de novembro de 1988, 7.889, de 23 de novembro de 1989, 8.918, de 14 de julho de 1994, 9.972, de 25 de maio de 2000, 10.711, de 5 de agosto de 2003, e 10.831, de 23 de dezembro de 2003. Brasília, DF: Presidência da República, [2022]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2022/lei/L14515.htm. Acesso em: 10 jan. 2024.
4 BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Defesa agropecuária: histórico, ações e perspectivas. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Secretaria de Defesa Agropecuária. Brasília: MAPA, 2018.
5 SENADO FEDERAL. Projeto de Lei nº 1.293, de 2021. Dispõe sobre os programas de autocontrole dos agentes privados regulados pela defesa agropecuária e sobre a organização e os procedimentos aplicados pela defesa agropecuária aos agentes das cadeias produtivas do setor agropecuário; institui o Programa de Incentivo à Conformidade em Defesa Agropecuária, a Comissão Especial de Recursos de Defesa Agropecuária e o Programa de Vigilância em Defesa Agropecuária para Fronteiras Internacionais (Vigifronteiras); altera as Leis nºs 13.996, de 5 de maio de 2020, 9.972, de 25 de maio de 2000, e 8.171, de 17 de janeiro de 1991; e revoga dispositivos dos Decretos-Leis nºs 467, de 13 de fevereiro de 1969, e 917, de 8 de outubro de 1969, e das Leis nºs 6.198, de 26 de dezembro de 1974, 6.446, de 5 de outubro de 1977, 6.894, de 16 de dezembro de 1980, 7.678, de 8 de novembro de 1988, 7.889, de 23 de novembro de 1989, 8.918, de 14 de julho de 1994, 9.972, de 25 de maio de 2000, 10.711, de 5 de agosto de 2003, e 10.831, de 23 de dezembro de 2003. Presidência da República. Brasília, DF: Senado Federal, 2021. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1986958. Acesso em: 23 nov. 2023.
6 AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: Transcending the Deregulation Debate. Kettering, United Kingdom: Oxford Socio-Legal Studies, 1995.
7 ARANHA, M. I. Manual de Direito Regulatório: Fundamentos de Direito Regulatório. 5. ed., London: Laccademia Publishing, 2019.
8 AMADO, Joaquim Eustáquio de Souza. Segurança dos Alimentos: Uma Visão Sistêmica. In: Elementos de defesa agropecuária: sistema normativo, invasões biológicas, comunicação, história, risco e segurança dos alimentos, conformidade e rastreabilidade / edição de Evaldo Ferreira Vilela e Geraldo M. Callegaro. Piracicaba: FEALQ, 2013.
9 ANDRADE, Antonio. Autocontrole: avanços, riscos e limitações. 31 março 2023. Disponível em: https://anffasindical.org.br/index.php/biblioteca/artigos/2514-autocontrole-avancos-riscos-e-limitacoes. Acesso em: 19 jan. 2024.
10 NOGUEIRA, Nathália. Evolução Histórica da Defesa Agropecuária. In: Elementos de defesa agropecuária: sistema normativo, invasões biológicas, comunicação, história, risco e segurança dos alimentos, conformidade e rastreabilidade / edição de Evaldo Ferreira Vilela e Geraldo M. Callegaro. Piracicaba: FEALQ, 2013.
11 HEINZE, Luis Carlos. Luis Carlos Heinze analisa a PL do Autocontrole: “Os grandes países já usam esse sistema”. Youtube, 21 dez. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=llrBRVukv8U. Acesso em: 29 nov. 2023.
12 BRASIL. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Defesa agropecuária: histórico, ações e perspectivas. Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Secretaria de Defesa Agropecuária. Brasília: MAPA, 2018.
13 NOGUEIRA, Nathália. Evolução Histórica da Defesa Agropecuária. In: Elementos de defesa agropecuária: sistema normativo, invasões biológicas, comunicação, história, risco e segurança dos alimentos, conformidade e rastreabilidade / edição de Evaldo Ferreira Vilela e Geraldo M. Callegaro. Piracicaba: FEALQ, 2013.
Tiago Gubiani
ÁREAS DE ATUAÇÃO
Contratos Agrários e do Agronegócio • Propriedade Rural • Sucessão e Organização Familiar