Autocontrole e a fiscalização agropecuária no brasil
11 de julho de 2024Sumário
I – Da hipótese que fundamentou o artigo
II – Do direito violado
2.1 – Do cabimento da ação e da legitimidade do produtor
2.2 – Das nulidades da escritura de novação de crédito rural
2.2.1 – Das nulidades por violação à Constituição Federal
2.2.1.1 – Da violação ao Art. 22, inciso I, da CF
2.2.1.2 – Da violação ao Art. 187, inciso I, da CF
2.2.1.3 – Da violação ao Art. 5º, inciso XXXVI, da CF
2.2.2 – Da nulidade por violação à expressos dispositivos legais
2.2.2.1 – Da violação ao Art. 48, da Lei nº 8.171/91
2.2.2.2 – Da violação ao Art. 16, da Lei nº 4.829/65
2.2.2.3 – Da violação ao Art. 5°, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 167/67
2.2.2.4 – Da violação ao Art. 12, e seu parágrafo único, do Decreto-Lei nº 167/67
2.2.2.5 – Da violação ao Art. 36, do Decreto-Lei nº 167/67
2.2.2.6 – Da violação ao Art. 36, da Lei nº 13.606/2018
III – Da suspensão do processo em andamento
IV – Da conclusão
I – Da hipótese que fundamentou o artigo
Este artigo se baseou em uma situação real e resume a fundamentação sugerida para o ajuizamento de uma ação de nulidade de novação de crédito rural em crédito bancário feita por escritura pública.
Pois bem. Certo produtor rural tomou empréstimos na modalidade de crédito rural para custear sua lavoura e melhorar seu maquinário em estabelecimento bancário credenciado pelo Banco Central para esta finalidade. Esses créditos foram instrumentalizados em cédulas de crédito rural, portanto, através de títulos de crédito de regência pelo direito agrário, conforme previsão constitucional e legal.
Mas, como geralmente ocorre nessa atividade de forte álea operacional, o produtor rural não consegui honrar com as obrigações assumidas, e o banco, detentor do mando econômico no pequeno município de situação do negócio, o induz a transformar a dívida agrária em mera dívida bancária, substituindo cláusulas legais originárias, como (a) a mudança do juros de mora com percentual fixado em lei pela comissão de permanência com taxa de mercado; (b) alteração através de escritura pública de novação de dívida sem a devida averbação nos respectivos títulos de créditos registrados no Registro de Imóveis conforme determinava a lei na ocasião; (c) não facultando que o produtor fosse assistido por advogado em uma transação complexidade e de grande vulto em que o banco foi representado por seus especialistas e, ainda por cima, (d) impondo o pagamento dos honorários a esses advogados, que, se cumprisse a legislação agrária, seria despiciendo.
Mesmo assim, a transmutação formal e materialmente ilegal só agravou a dificuldade financeira do produtor rural, impossibilitando-o de cumprir o acordado. Em decorrência disso o banco ajuizou ação ordinária de cobrança, tendo como instrumento a própria escritura pública, e não os títulos de crédito de força executiva novados.
A contestação na ação ordinária de cobrança se limitou a discutir o percentual de juros cobrados e transitou em julgado, estando em fase de execução de sentença.
Apesar da novação nenhuma averbação foi feita nos títulos de crédito rural, estando em aberto no Registro de Imóveis.
II – Do direito violado
2.1 – Do cabimento da ação e da legitimidade do produtor
Antes de enfrentar com análise tópica as violações constitucionais e infraconstitucionais que a escritura de novação de crédito rural em dívida bancária incidiu, é preciso verificar se uma ação visando sua nulidade seria cabível e se o produtor rural teria legitimidade para propô-la.
Inicialmente, tramitando ação de cobrança da dívida novada, em respeito ao princípio da boa-fé processual, o produtor rural deve informar ao juízo a existência de tal demanda, inclusive porque a arguição de nulidade da escritura que a embasou é matéria prejudicial e ainda que a validade formal e material da escritura de novação de dívida não foi ventilada, sendo inaplicável o disposto no Art. 502 do CPC, que trata da coisa julgada, quando diz:
Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
Aliás, exatamente sobre isso o STJ já sumulou:
Súmula nº 286:
A renegociação de contrato bancário ou à confissão da dívida não impede a possibilidade de discussão sobre eventuais ilegalidades dos contratos anteriores.
De outro lado, mesmo que se admitisse que a sentença proferida na ação de cobrança teria analisado incidentemente o documento público quando enfrentou encargos nela inseridos, ainda assim seria possível o manejo da ação de nulidade de cunho eminentemente processual, a actio nullitatis, para alegar vícios formais absolutos, desde quando a pretensão de nulidade não pode ser mais satisfeita na ação de cobrança em que o documento foi veiculado.
Ademais, a arguição de sua nulidade, porque prenhe de ferimentos à Constituição Federal e à dispositivos expressos de lei, não se sujeitam aos prazos prescricional ou decadencial.
Isso mesmo. Quanto ao prazo para o ajuizamento da ação de nulidade de negócio jurídico por não se revestir de forma prescrita em lei, tem-se que ela não se sujeita a qualquer prazo prescricional ou decadencial, podendo, portanto, ser interposta a qualquer tempo. Cabe, ainda, destacar que as nulidades absolutas constituem matérias de ordem pública, e que, por isso mesmo, podem ser alegadas por qualquer das partes, por terceiros interessados, pelo Ministério Público ou até mesmo reconhecidas de ofício pelo julgador.
O Código Civil de 1916, (o de 2002 só entrou em vigou no início de 2003), já estabelecia:
Art. 145. É nulo o ato jurídico:
III – quando não revestir a forma prescrita em lei
Art. 146. As nulidades do artigo antecedente podem ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo Ministério Público, quando lhe couber intervir.
Parágrafo único. Devem ser pronunciadas pelo juiz, quando conhecer do ato ou dos seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo permitido supri-las, ainda a requerimento das partes.
E o Código Civil de 2002 repetiu e ampliou as causas de nulidade do negócio jurídico:
Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
IV – não revestir a forma prescrita em lei;
VI – tiver por objetivo fraudar lei imperativa;
Art. 169. O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo.
Por fim, quanto à legitimidade para a propositura da ação, tenho que o produtor rural, já que firmou a escritura pública com o banco, é parte legítima para postular a nulidade do documento público. Isso porque, se o documento é nulo por força de lei, não pode a manifestação de vontade supri-lo, como se observa no Art. 169 do Código Civil.
Embora se possa concluir na perspectiva do produtor rural que a escritura pública que novou a dívida de crédito rural seja nula de pleno direito, a certeza desta afirmação somente surgirá com o trânsito em julgado de decisão proferida pelo Poder Judiciário. Mas, apesar disso, de logo surge uma verdade: o banco, desvirtuando com tamanha magnitude uma dívida de crédito rural para transformá-la em mera dívida bancária, não cometeu erro de direito continuado porque os profissionais que o assistem são experts na matéria.
Dito isso surge agora uma dúvida razoável: como o banco conhecedor da legislação agrária por dever de ofício e não lhe sendo dado o direito de desrespeitá-la, o que o leva a agir dessa forma para contornar a tutelada do BANCO CENTRAL?
2.2 – Das nulidades da escritura de novação de crédito rural
Quanto à questão de fundo, ou seja, quanto à nulidade da escritura pública de novação de crédito rural em dívida bancária pura e simples, penso que o documento público:
– viola abertamente dispositivos constitucionais e legais que exigem que qualquer modificação referente ao crédito rural se dê dentro das regras do direito agrário e se isso é feito pela ótica do direito civil, cria absurdamente uma nova dívida, já que as cédulas rurais continuam em aberto;
– e com isso subtrai do Banco Central a fiscalização sobre o crédito rural, que é um sistema de política agrícola cujo dinheiro provém dos depósitos obrigatórios absolutamente tutelado pela Autarquia.
Nos tópicos seguintes, serão analisadas as causas da nulidade do documento público.
2.2.1 – Das nulidades por violação à Constituição Federal
Em decorrência do exercício de uma atividade fortemente subvencionada pelo Poder Público, o produtor rural se torna beneficiário de crédito rural, cuja dívida é representada por títulos de créditos rigidamente regrado por ramo de direito próprio, como é o direito agrário, que com suas regras obrigatórias afasta a aplicação do direito civil.
Sendo essa dívida desvirtuada para simples dívida bancária, só no campo constitucional, é possível se elencar três nulidades absolutas.
2.2.1.1 – Da violação ao Art. 22, inciso I, da CF
A primeira nulidade por ferimento à preceito constitucional está que o direito agrário é ramo autônomo do direito brasileiro e por isso tem vida própria. Isso significa que a relação jurídica agrária será sempre agrária até a sua extinção. Não pode no meio do caminho ser desviada para outro tipo de direito. A vontade das partes, como manifestação de direito, não pode se desviar dessa finalidade. E se isso ocorre, o ato que violou o preceito constitucional é absolutamente nulo.
A Constituição Federal diz no seu Art. 22, inciso I:
Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre:
I – direito civil, comercial, agrário, marítimo, …
Este dispositivo constitucional implica em duas conclusões importantes.
A primeira delas é a de outorgar competência à União para legislar, sobre os direitos enumerados, o que significa dar-lhe autonomia tanto na previsão, como na solução dos conflitos surgidos nas relações jurídicas por eles pautadas.
E a isso a doutrina chama ramo do direito. Nesse diapasão tem-se que a árvore do direito brasileiro tem vários ramos e cada um deles com estrutura própria sendo impossível misturá-los, salvo permissivo legal.
Especificamente, as relações jurídicas que envolvam direito agrário devem ser pautadas por regras criadas por esse direito, aplicando-se o direito civil apenas nas omissões.
E a segunda conclusão é que somente a LEI formal, dicção do CONGRESSO NACIONAL, e não manifestação de vontade privada, pode alterar regras jurídicas criadas por aqueles.
Ora, a dívida de crédito rural novada tem estrutura constitucional de direito agrário e por isso mesmo possui legislação especifica que exige cumprimento absoluto. Portanto, aplicar regras de direito civil para novar dívida representada por títulos de crédito rural com dispositivos legais específicos, transformando-o em mero documento representativo de dívida bancária de cunho civil, é causa de nulidade absoluta que deve ser afastada com veemência.
Para se demonstrar a imperatividade das normas de direito agrário, tome-se, como exemplo, a cedência de áreas rurais para a atividade produtiva agrária mediante o pagamento de um aluguel. Isso é arrendamento rural e as regras aplicáveis são as do Estatuto da Terra e do Decreto 59.566/66.
Se essa relação jurídica foi formalizada como locação, pelo Código Civil, esse ato jurídico é absolutamente nulo por violação à autonomia constitucional do direito agrário e a respectiva lei de regência.
Este é o caso em análise: dívidas originadas de crédito rural e formalizadas em títulos de créditos rurais, portanto criadas na égide do direito agrário, ramo constitucionalmente autônomo do direito brasileiro, só podem ser novadas conforme previsão legislativa própria.
A escritura pública como ato jurídico privado não tem o poder de inovar atropelando regras cogentes constitucionais.
E se isso for feito, tal documento é absolutamente nulo passível de desconstituição através da ação da ação de nulidade de ato jurídico, por ferimento ao Art. 22, caput, e inciso I, da Constituição Federal.
2.2.1.2 – Da violação ao Art. 187, inciso I, da CF
A segunda nulidade por ferimento à norma constitucional é que o crédito rural encontra o seu fundamento especificamente no Art. 187, inciso I, da Constituição Federal, que diz:
Art. 187 – A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transporte, levando em conta, especialmente:
I – os instrumentos creditícios e fiscais.
Pelo comando constitucional, tem-se que crédito rural é matéria de política agrícola, e somente lei especifica elaborada com a prévia participação dos produtores e trabalhadores do setor de produção rural e dos setores de comercialização, armazenagem e transporte, tem o poder de alterar as situações pretéritas.
Assim, por força legal, a escritura pública como manifestação jurídica privada não é instrumento válido para alterar a estrutura de um negócio agrário envolvendo crédito rural.
E isso significa que a novação de tal dívida mediante escritura pública transmudando dívidas agrárias em dívida civil viola dispositivo constitucional do Art. 187, caput, e inciso I, da Constituição Federal.[1]
2.2.1.3 – Da violação ao Art. 5º, inciso XXXVI, da CF
Agora a terceira violação à Constituição Federal.
O produtor rural que toma crédito rural, empréstimo proveniente de valores contingenciados pelo Banco Central, o faz em obediência ao disposto no Art. 48, da lei 8.171/91, como se verá mais adiante.
Portanto, as regras não são as estabelecidas pelo banco.
Isso significa que o produtor rural, ficando impossibilitado de saldar suas dívidas de crédito rural, no caso de renegociação, o caminho a seguir seria aquele pautado dentro dos ditames estabelecidos pela própria lei de regência.
Essa obediência é chamada de direito adquirido que, nem a lei pode modificar, quanto mais acordo privado.
O Art. 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, garante o direito adquirido, nestes termos:
Art. 5º
XXXVI – A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.
E a Lei de Introdução ao Direito Brasileiro, define o que seja direito adquirido dessa forma:
Art. 6º A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
§ 2º Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição pré-estabelecida inalterável, a arbítrio de outrem.
Como a forma de liquidação de uma dívida de crédito rural só pode se operar dentro das normas de sua criação em respeito ao direito adquirido, sendo novada com abstração dessa regência surge o paradoxo criado pela escritura pública de novação: o crédito foi novado, mas os títulos continuam formalmente válidos e tendo como devedor o produtor rural!
Ou seja, como o banco ajuizou ação de cobrança com fundamento na escritura de novação, tem-se que a dívida originada de crédito rural está representada por dois documentos, os títulos de crédito rural e a escritura pública!
E surge uma questão preocupante: como um dinheiro que era contingenciado pelo Banco Central, passou a ser livremente disposto pelo banco para ser novado com encargos de mercado?
Mas a resposta a essa pergunta somente será aferível na órbita do direito administrativo disciplinar, temática que foge ao propósito deste artigo.
Na órbita do direito agrário, a escritura pública de novação é nula por violação aos Art. 22, inciso I, Art.187, inciso I e Art.5º, inciso XXXVI, todos da Constituição Federal.
2.2.2 – Da nulidade por violação à expressos dispositivos legais
Nos tópicos anteriores, afirmei que a escritura pública de novação de crédito rural em dívida bancária civil era nula por violação a três dispositivos constitucionais, ou seja, (a) transformou questão pautada pelo direito agrário em direito civil; (b) estabeleceu regras privadas sobre crédito rural, quando somente lei específica poderia fazê-lo e (c) atentou quanto ao direito adquirido do produtor rural de ser executado conforme a lei agrária.
E para que o leitor acompanhe a lógica do raciocínio quanto à afirmação de que, além dos dispositivos constitucionais, a escritura de novação de dívida agrária em dívida bancária civil violou vários dispositivos legais, relembro que crédito rural, embora comumente seja difundido como uma mera operação bancária, em verdade, é uma forma de empréstimo feita aos produtores primários por agentes financeiros, mas sob a rígida tutela do Governo Federal, especialmente porque como exação de política pública prevista constitucionalmente, os juros cobrados são infinitamente inferiores aos de mercado. Portanto, não se trata de uma simples relação entre o tomador e o banqueiro pautada pela liberdade de contratação, ou como é conhecida desde os romanos de pacta sunt servanda. Trata-se de uma relação jurídica predisposta pelo governo quer quanto ao seu conteúdo, quer quanto à sua forma através de leis expressas. É o que a doutrina chama de dirigismo contratual absoluto.
Agora os dispositivos legais violados.
2.2.2.1 – Da violação ao Art. 48, da Lei nº 8.171/91
As leis de regência material do crédito rural são a de nº 4.829/1965, e a de nº 8.172/91.
E o Art. 3º, da Lei nº 4.829/65 foi o dispositivo legal que primeiramente especificou para que este instrumento de política agrícola se destinava, definindo o seu alcance.
Este dispositivo foi ampliado pelo Art. 48, da Lei nº 8.171/91, nos seguintes termos:
Art. 48 – O crédito rural, instrumento de financiamento da atividade rural, será suprido por todos os agentes financeiros sem discriminação entre eles, mediante aplicação compulsória, recursos próprios livres, dotações das operações oficiais de crédito, fundos e quaisquer outros recursos, com os seguintes objetivos:
I – estimular os investimentos rurais para produção, extrativismo não predatório, armazenamento, beneficiamento e instalação de agroindústria, sendo esta, quando realizada por produtor rural ou suas formas associativas;
II – favorecer o custeio oportuno e adequado da produção, do extrativismo não predatório e da comercialização de produtos agropecuários;
III – incentivar a introdução de métodos racionais no sistema de produção, visando ao aumento da produtividade, à melhoria do padrão de vida das populações rurais e à adequada conservação do solo e preservação do meio ambiente;
IV – vetado
V – propiciar, através de modalidade de crédito fundiário, a aquisição e regularização de terras pelos pequenos produtores, posseiros e arrendatários e trabalhadores rurais;
VI – desenvolver atividades florestais e pesqueiras.
Pela leitura do dispositivo legal fica claro que, quando o produtor rural toma dinheiro em um banco para custear sua lavoura ou para investir na melhoria de seu maquinário sob a rubrica de crédito rural, essa operação não é de simples empréstimo bancário em que o banco tem a liberdade de estabelecer o preço desse dinheiro. Mas se isso ocorre, inclusive com a inserção em escritura pública de novação de substituição de juros pelo inadimplemento fixados em lei pela comissão de permanência com taxa de mercado, essa novação é absolutamente nula por violação legal
Revisando: a lei não estabeleceu que, se não forem pagos estes empréstimos, poderiam se transforma em meras dívidas civis. Ao contrário, fixou o percentual dos juros de mora.
E se há referência na escritura pública de que o acordo se dava por permissão da Resolução nº 2.471/98 do Banco Central, isso não é verdadeiro.
Primeiro, porque dita resolução não especifica que tal acordo inclua as dívidas de crédito rural.
E segundo, como ato administrativo que é, a resolução não pode afrontar a lei, em respeito ao princípio da legalidade a que toda administração está obrigada a respeitar, consoante o disposto no Art. 37, caput, da Constituição Federal que diz:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte.
E o STJ já decidiu, como foi citado, que a lei de regência de uma situação jurídica passada continua incidindo nas suas alterações futuras.
Não fora por isso, como também já foi mencionado, a Constituição Federal e a Lei de Introdução do Direito Brasileiro estabelecem absoluto respeito ao direito adquirido.
É de se evidenciar que, em todos os incisos do Art. 48 da Lei nº 8.171/91, acima transcrito, como já ocorria no Art. 3º da Lei nº 4.829/65, o legislador deixou clara sua ideia de proteção ao produtor rural ao utilizar termos como estimular, favorecer, incentivar, propiciar e desenvolver, todos eles termos característicos de quem intervém com a finalidade de ajudar, circunstância inerente à aplicação de uma justiça social para o crédito rural. Esse fato tem levado o campo a atingir anualmente recordes de produtividade colocando o País em igualdade com as grandes potências na produção de alimentos. Reafirmo esse ponto porque a proteção ao produtor rural deve ser a tônica a ser observada pelos órgãos estatais vinculados à estrutura creditícia rural, já que, ao concretizarem o instituto, não podem fugir da sistemática originalmente imposta.
E se o faz, esse desvio de comportamento representado pela novação de crédito rural em dívida civil, agride o sistema que o legislador buscou proteger e se constitui em ato jurídico viciado por desvio ou até mesmo abuso de poder. Quem detém poder de exação do crédito rural não pode se desviar da estrutura delineada pelo legislador. Mas, se mesmo assim a novação é praticada, essa não só é nula de pleno direito, como se constitui é uma agressão ao Poder Legislativo que criou a lei protetiva.
Não se pode abstrair que o legislador foi específico quando estabeleceu que a forma de exteriorização do crédito rural não se daria por um contrato, mas através de títulos de créditos rurais, conforme diz o Decreto-Lei nº 167/67, e no que interessa à boa compreensão deste artigo, através de cédulas rurais.
De outro lado, além dos juros mais baixos que os de marcado, a forte tutela estatal se consubstancia por um outro fator relevante: o dinheiro emprestado não está na livre disposição do banqueiro! Ou ele pode integrar o orçamento da União ou está contingenciado pelo Governo Federal, através da autarquia Banco Central.
Assim, é com base nestes abusos, que penso ser possível o ajuizamento de ação declaratória de nulidade de negócio jurídico para ver declarada nula a escritura pública de novação de crédito rural em dívida bancária de cunho civil.
2.2.2.2 – Da violação ao Art. 16, da Lei nº 4.829/65
A novação via escritura pública que transforma dívida de crédito rural em dívida puramente bancária ainda viola o Art. 16, da Lei nº 4.829/65, que atribui ao CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL, o controle do crédito rural.
O artigo citado tem esta redação:
Art. 16. Os recursos destinados ao crédito rural, de origem externa ou interna, ficam sob o controle do Conselho Monetário Nacional, que fixará, anualmente, as normas de distribuição aos órgãos que participem do sistema de crédito rural, nos termos do art. 7º.
Contudo, embora a escritura pública possa mencionar que a novação tenha sido feita em obediência às Resoluções nº 1.129/86, 2.471/98 e 2.489/00 do Banco Central, autarquia executora das determinações do CMN, e à Lei nº 9.138/98, em nenhum momento estes dispositivos estabelecem a possibilidade de o banco descaracterizar o crédito rural para transformá-lo em mera dívida bancária ou a de deixar de averbar a novação realizada nos respectivos títulos de crédito rural.
Assim, a novação fere o disposto no Art. 16, da Lei nº 4.829/65, pois retira o controle do CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL, através do BANCO CENTRAL.
E fica a pergunta, o BANCO CENTRAL será cientificado desse fato realizado ao arrepio de suas determinações?
Mais uma vez deve ser dito que tal indagação somente encontra resposta na exação de um processo administrativo disciplinar, matéria que extrapola os limites deste artigo.
2.2.2.3 – Da violação aos Art. 5°, parágrafo único, do Decreto-Lei nº 167/67
Não é incomum que na novação de dívida agrária em dívida civil se observe que, no caso de inadimplemento, a cobrança de comissão de permanência à taxa de mercado do dia do pagamento, juros de mora de 1% ao ano e multa de 2%.
Ora, o parágrafo único, do Art. 5º, do Decreto-Lei nº 167/67, que dispõe sobre títulos de crédito rural, estabelece que, no caso de mora:
Art. 5º
Parágrafo único. Em caso de mora, a taxa de juros constante da cédula será elevável de 1% (um por cento) ao ano.
Embora a doutrina e a jurisprudência admitam a cobrança da comissão de permanência em substituição aos juros de mora no caso de inadimplemento do devedor desde que haja equivalência em seus percentuais, na hipótese em análise, incide a nulidade porquanto a comissão de permanência fica à taxa de mercado do dia do pagamento.
A violação da novação com tal mudança viola frontalmente o parágrafo único, do Art. 5º, do Decreto-Lei nº 167/67, e é tão clara que é possível invocar a máxima romana no sentido de que in claris cessat interpretativo.
2.2.2.4 – Da violação ao Art. 12, e seu parágrafo único, do Decreto-Lei nº 167/67
Os títulos de crédito rural, mesmo que sejam objeto de NOVAÇÃO por escritura pública, continuam títulos de créditos formais, portanto, regidos pelo Decreto-Lei nº 167/1967. Isso porque as alterações insertas em documento apartado não os descaracterizam. Ao contrário. São aditivos plenamente aceitos na lei citada.
E estes títulos, na teoria da cartularidade dos títulos de crédito, desde que respeitem os requisitos formais exigidos, adquirem vida própria independente do próprio negócio que representam e somente por via própria podem ser liquidados.
Em outras palavras, os títulos de crédito objetos da novação são regidos por institutos jurídicos autônomos que afastam a aplicação do direito comum, que é aplicável somente nas ausências de dispositivos específicos.
É o que diz o Decreto-Lei nº 167/67, no Art. 12, caput, e seu parágrafo único, nestes termos:
Art. 12. A cédula de crédito rural poderá ser aditada, ratificada e retificada por meio de menções adicionais e de aditivos, datados e assinados pelo emitente e pelo credor.
Parágrafo único. Se não bastar o espaço existente, continuar-se-á em folha do mesmo formato, que fará parte integrante do documento cedular.
Vou além da pura leitura dos dispositivos acima expressos e penso que as alterações das cédulas rurais possam se verificar através de escritura pública, no entanto, tais alterações deverão se fazer constar nos respectivos títulos.
Embora tratando de cessão de dívida rural a terceiro, vale citar acórdão pela matéria de fundo veiculada, quando o Superior Tribunal de Justiça ao julgar o Resp. 1153702/MG, relatado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, disse:
Em suma, o regime jurídico aplicável é o do sucedido, e não o do sucessor; o do cedente, e não o do cessionário.
… Ademais, o fato de ter sido a Cédula Rural cedida, deixando o banco de ser credor e transmitindo o seu status para um ente federado, tem o mesmo sentido jurídico de a cessão de crédito dar-se entre dois particulares, não implicando na transmudação do regime jurídico material, permanecendo hígido o sistema legal acerca desse título cambial, portanto, incidentes as normas de quando pactuada a relação jurídica. (Publicado no Dj 10/05/2012).
Logo, conquanto a escritura pública possa servir de instrumento para se alterar os títulos de crédito rural, se esta alteração visa transformar dívida de crédito rural em simples dívida bancária, isso caracteriza desvio de finalidade e torna o documento público absolutamente nulo por violação legal.
2.2.2.5 – Da violação ao Art. 36, do Decreto-Lei nº 167/67
Já se viu nos tópicos anteriores, que a escritura pública de novação do crédito rural em mera dívida bancária é nula por violação à vários preceitos constitucionais e legais.
Mas a situação não fica por aí. Outra nulidade pode ocorrer se a concessão do crédito rural ocorreu antes de 07 de abril de 2020.
É que até esta data vigia o Art. 36 do Decreto-Lei nº 167/67, expressamente revogado pelo Art. 61, V, letra a, da Lei nº 13.986/2020, nestes termos:
Art. 36. Para os fins previstos no artigo 30 deste Decreto-lei, averbar-se-ão, à margem da inscrição da cédula, os endossos posteriores, à inscrição, as menções adicionais, aditivos, avisos de prorrogação e qualquer ato, que promova alteração na garantia ou nas condições pactuadas.
Ora, a revogação não retroage para apagar as exigências da lei revogada que vigorava por ocasião da emissão dos títulos de crédito rural, por aplicação do Art. 2º, do Decreto-Lei nº 4.657/1942, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, com a redação dada pela Lei nº 12.376/2010:
Art. 2º – Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
Portanto, tendo os títulos de crédito rural sido emitidos durante a vigência do Decreto-Lei nº 167/67, que não só exigia a averbação dos títulos originais como quaisquer alterações ocorridas posteriormente no Cartório de Registro de Imóveis, essa omissão inquina de nulidade a escritura pública de novação.
2.2.2.6 – Da violação ao Art. 36, da Lei nº 13.606/2018
E por fim, o ajuizamento de ação de cobrança com base em escritura pública de novação de dívida de crédito rural em simples dívida bancária com base no direito civil que tenha como origem crédito rural concedido até 31 de dezembro de 2016 pode impedir que o produtor rural seja beneficiado pela Lei nº 13.606/2018, que, no seu Art. 36, expressamente estabelece a possibilidade de renegociação das dívidas de crédito rural sem o cômputo de multa, mora ou quais outros encargos de inadimplemento, inclusive honorários advocatícios, nestes termos
Art. 36. É permitida a renegociação de dívidas de operações de crédito rural de custeio e investimento contratadas até 31 de dezembro de 2016, lastreadas com recursos controlados do crédito rural, inclusive aquelas prorrogadas por autorização do CMN, contratadas por produtores rurais e por suas cooperativas de produção agropecuária em Municípios da área de atuação da Sudene e do Estado do Espírito Santo, observadas as seguintes condições:
I – os saldos devedores serão apurados com base nos encargos contratuais de normalidade, excluídos os bônus, rebates e descontos, sem o cômputo de multa, mora ou quaisquer outros encargos por inadimplemento, honorários advocatícios ou ressarcimento de custas processuais;
II – o reembolso deverá ser efetuado em prestações iguais e sucessivas, fixado o vencimento da primeira parcela para 2020 e o vencimento da última parcela para 2030, mantida a periodicidade da operação renegociada, sem a necessidade de estudo de capacidade de pagamento;
III – os encargos financeiros serão os mesmos pactuados na operação original;
IV – a amortização mínima em percentual a ser aplicado sobre o saldo devedor vencido apurado na forma do inciso I do caput deste artigo será de:
a) 2% (dois por cento) para as operações de custeio agropecuário;
b) 10% (dez por cento) para as operações de investimento;
V – o prazo de adesão será de até cento e oitenta dias, contado da data do regulamento de que trata o § 7º deste artigo;
VI – o prazo de formalização da renegociação será de até cento e oitenta dias após a adesão de que trata o inciso IV do caput deste artigo.
Ocorrendo isso, se observa que a escritura de novação da dívida de crédito rural em dívida bancária é nula por impedir que o produtor rural possa ser beneficiado com o alongamento de sua dívida em 10 anos.
III – DA SUSPENSÃO DO PROCESSO EM ANDAMENTO
Como se viu nos tópicos anteriores, uma escritura pública que altere uma dívida de crédito rural para simples dívida bancária com violação a preceitos constitucionais e legais, é nula de pleno direito.
Diante disso, pela questão prejudicial incidente sobre o documento que embasa a ação de cobrança, é possível se pedir ao juízo da nulidade a concessão de tutela de urgência para suspender imediatamente a ação anterior em andamento, pois presentes seus dois principais requisitos, quais sejam: a prova inequívoca, apta a atestar a verossimilhança dos fatos alegados, bem como a presença de risco de dano irreparável ou de difícil reparação em relação ao resultado útil do processo, conforme passam a ser demonstrados, em conformidade com o Art. 300 do CPC, §§.
Penso que, no caso em análise, são verossímeis as várias alegações de infrações constitucionais e legais que uma novação feita transmudando crédito rural em mera dívida civil.
De igual maneira, encontra-se é detectável o risco de dano irreparável ou de difícil reparação em relação ao resultado útil do processo. Isso porque, uma possível demora na concessão da medida liminar causará dano irreparável ao produtor rural, haja vista que a ação de cobrança em curso está a produzir efeitos nefastos porquanto já se encontra em execução de sentença, o que geraria mudança do status do bem da vida que está sendo perseguido.
Assim, o risco de dano irreparável é concreto e atual, pois não se pode consagrar o prejuízo para depois tentar recuperá-lo!
O receio não decorre de simples estado de espírito do produtor rural, muito menos se limita à situação subjetiva de temor ou dúvida pessoal, mas liga-se à situação objetiva consistente nas várias violações de dispositivos constitucionais e legais, amplamente demonstrada na exposição retro.
Dessa maneira, com base no Art. 300, §1º e §2º, do CPC, pode o produtor rural formular requerimento de urgência para que seja suspensa imediatamente o processo em andamento.
IV – DA CONCLUSÃO
Pelo que se observa dos argumentos apresentados, a novação de crédito rural em mera dívida civil através de escritura pública, por violação a vários dispositivos constitucionais e legais, é documento nulo passível de declaração em ação autônoma própria, mesmo que em andamento ação de cobrança.
Notas:
[1] Como o tema envolvendo Direito Agrário e, no caso, crédito rural, não é muito comum no dia a dia das relações agrárias, o Autor traz à colação doutrina que já produziu a esse respeito encontrável em BARROS, Wellington Pacheco, CURSO DE DIREITO AGRÁRIO, volume 1, LIVRARIA DO ADVOGADO EDITORA, Porto Alegre, 2008, capítulos 12 e 13:
12. A estrutura do crédito rural
12.1. Conceito
Seguindo a sistemática de proteção ao homem do campo, estrutura própria de um direito social, como é o direito agrário, o legislador não se descurou de também estabelecer regras que permitissem o alocamento de recursos, seu gerenciamento e a forma de sua distribuição, visando com isso a desenvolver oficialmente as atividades inerentes à produção rural. Para tudo isso, denominou crédito rural.
O próprio legislador buscou resumir os fundamentos de sua ideia, quando expressamente conceituou o instituto que criava, através da Lei nº 4.829, de 05.11.65, Art. 2º:
“Considera-se crédito rural o suprimento de recursos financeiros por entidades públicas e estabelecimentos de crédito particulares a produtores rurais ou a suas cooperativas para aplicação exclusiva em atividade que se enquadrem nos objetivos indicados na legislação em vigor.”
O Decreto nº 58.380, de 10.05.66, que regulamentou esta lei, reproduziu este conceito no seu Art. 2º.
Do conceito legal, evidencia-se que crédito rural é a destinação de recursos financeiros, quer sejam eles da União, por intermédio de seus vários órgãos, quer das instituições bancárias particulares concessionárias desse serviço público, com a finalidade específica de desenvolvimento da produção rural. É, em outras palavras, dinheiro oficial, ou particular especialmente vinculado, que o governo destina de forma subsidiada ao produtor rural ou às suas cooperativas.
12.2. Fundamento legal
Como o crédito rural é uma forma de intervenção do Estado numa atividade historicamente privada, o comércio de dinheiro, suas regras evidentemente que são estratificadas em leis, que são os comandos estatais.
De outro lado, elas demonstram a plena autonomia de um instituto típico de direito agrário, cujos princípios protetivos sempre devem ser aplicados, pois ele tem como meta a justiça social. Logo, apenas subsidiariamente e desde que não conflitante, se devem aplicar os princípios do direito civil.
O crédito rural encontra o seu fundamento legal para existir, essencialmente, no Art. 187, inciso I, da Constituição Federal, que diz:
A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transporte, levando em conta, especialmente:
I – os instrumentos creditícios e fiscais.
A Lei nº 4.829/65, recepcionada pela Constituição Federal, é onde está institucionalizado; e ainda no Decreto nº 58.380/66, que regulamentou a Lei nº 4.829/65; no Decreto-Lei nº 167, de 14.02.67, que criou os títulos de crédito rural; no Decreto nº 6.214, de 18.01.68, que disciplina as garantias dos títulos de crédito rural; na Lei nº 8.171, de 17.01.91, que estabelece regras de política agrária, e na Lei nº 8.929, de 22.08.94, que criou um novo título de crédito chamado Cédula de Produto Rural.
12.3. Objetivos do crédito rural
O Art. 3º da Lei nº 4.828/65 foi o dispositivo legal que primeiramente especificou os objetivos do crédito rural, definindo o seu alcance.
Hoje, com pequenas alterações, estes princípios estão enumerados no Art. 48 da Lei nº 8.171/91, nos seguintes termos:
Art. 48 – O crédito rural, instrumento de financiamento da atividade rural, será suprido por todos os agentes financeiros sem discriminação entre eles, mediante aplicação compulsória, recursos próprios livres, dotações das operações oficiais de crédito, fundos e quaisquer outros recursos, com os seguintes objetivos:
I – estimular os investimentos rurais para produção, extrativismo não predatório, armazenamento, beneficiamento e instalação de agroindústria, sendo esta, quando realizada por produtor rural ou suas formas associativas;
II – favorecer o custeio oportuno e adequado da produção, do extrativismo não predatório e da comercialização de produtos agropecuários;
III – incentivar a introdução de métodos racionais no sistema de produção, visando ao aumento da produtividade, à melhoria do padrão de vida das populações rurais e à adequada conservação do solo e preservação do meio ambiente;
IV – vetado
V – propiciar, através de modalidade de crédito fundiário, a aquisição e regularização de terras pelos pequenos produtores, posseiros e arrendatários e trabalhadores rurais;
VI – desenvolver atividades florestais e pesqueiras.
Pela enumeração dos objetivos do crédito rural elencada na lei, já se pode observar a larga intenção do legislador de abarcar com suprimentos financeiros os vários setores vinculados à produção rural, inclusive nele agrupando atividade que diretamente nada tem de rural, como é o caso da atividade pesqueira.
É de se evidenciar que, em todos os incisos do Art. 48 da Lei nº 8.171/91, acima transcrito, como já ocorria no Art. 3º da Lei nº 4.829/65, o legislador deixou clara sua ideia de proteção ao produtor rural ao utilizar termos como estimular, favorecer, incentivar, propiciar e desenvolver, todos eles característicos de quem intervém com a finalidade de ajudar, circunstância inerente à aplicação de uma justiça social para o crédito rural. Insisto nesse ponto, porque ele deve ser a tônica a ser observada pelos órgãos estatais que dirigem a estrutura creditícia rural, que, ao emanarem ordens delegadas na concretização do instituto, não podem fugir da sistemática originalmente imposta. Esse desvio de comportamento, como por exemplo na expedição de ordens de serviços ou portaria, agride o sistema que o legislador buscou proteger e se constitui em ato administrativo viciado por desvio ou até mesmo abuso de poder. Quem detém poder delegado de regulamentar preceitos legais não pode se desviar da estrutura delineada pelo poder delegante. E se o ato é praticado por órgãos do Executivo, esse excesso é uma agressão ao Poder Legislativo que criou a lei protetiva.
12.8. A exegese do crédito rural
Uma das questões ainda não bem consolidada na doutrina e na jurisprudência é a utilização com mais profundidade de princípios criados pela hermenêutica jurídica, ciência propedêutica de grande valia para a melhor compreensão do direito. Isto tudo porque se fixou como quase natural a ideia de satisfação absoluta da lei. Por conseguinte, poder perquirir-se outras formas de aplicação do direito foi deixado quase na inércia. Partiu-se, assim, para a máxima um tanto corrosiva de limitação da liberdade jurídica sob o manto de que legislar é sempre preciso. O doutrinador ou o Juiz, por esse prisma, passaram de intérpretes do direito, que sempre foram, para seres meramente autômatos, pois decodificar leis se tornou seus limites.
Todavia, como vejo o direito na ótica de um mundo dentro de um macrocosmo social, onde a lei é tão-somente um seu satélite, e não o próprio mundo, tenho que a ciência da hermenêutica jurídica é de ser utilizada para uma boa compreensão do direito positivo nesta ótica maior. Assim, esta ciência estabelece que além dos métodos de interpretação conhecidos (gramatical, teleológico, histórico e dogmático), é possível utilizar-se, mesmo no Brasil que, por razões políticas, prima pelo legalismo ou o dogma de que somente o Legislativo pode dizer o direito, do método sociológico de interpretação. Ou, em outras palavras, o método que busca adequar o direito legislado a uma carência ou necessidade social, quer através de leis criadas exatamente com este rumo, quer através de uma exegese mais aberta. Tanto é verdade que quando se afirma, sem a devida profundidade dos antecedentes doutrinários, que o direito é um fato social, evidentemente se está buscando o elemento sociológico para interpretar a norma positivada sem se saber. O direito como meio de previsão e resolução de conflitos é um produto social. Nasce e tem vida no querer social. Não existe direito numa sociedade democrática que não conflitue, mesmo porque não existe sociedade sem conflito, pois este representa o jogo de interesse. Ou o que se vê não é direito. É um não-direito.
Feita esta introdução, no sentido de se estabelecer que é possível a utilização da interpretação sociológica mesmo que tenha o legislador buscado a titulação absoluta do direito no país, passo a analisar o contexto em que se situa a temática de crédito rural.
Quem observa o direito de fora dele sabe que qualquer dos seus ramos não é uma ilha. Todos eles, com maior ou menor intensidade, se intercomunicam. No entanto, este ou aquele ramo têm suas características próprias que os tornam, por isso mesmo, independentes ou autônomos. Coloco como exemplos o direito civil e o direito do trabalho. A sistemática do primeiro é da autonomia de vontade. A vontade humana com seus direitos e deveres é que dá ao direito civil aquela característica que o torna diferente e independente. A liberdade individual é o centro a proteger. Tanto é verdade que ele se insere no rol dos direitos privados. No que pertine aos contratos, essa vontade é tão vinculante que só excepcionalmente é admitida a ruptura. O que o homem contrata é lei, porque está em jogo sua vontade, que junto à vontade de alguém, cria uma corrente difícil de ser rompida. Já o direito do trabalho tem característica completamente diferenciada. Assim, embora tenha como relevância também o trato interpessoal, especificamente nas relações contratuais, o faz diferente, e aí se tem o quase total dirigismo estatal de seus preceitos. Melhor dizendo, o predomínio da vontade das partes do direito civil cede diante da tutela do Estado. Aqui elas não se estabelecem condições, nem se impõem leis pessoais. Estas são ditadas de forma imperativa e cogencial pelo estado legislador, uma vez que o sistema de proteção é o social. Isto faz surgir um fator de importância transcendental para a boa interpretação destes dois direitos, pois o conflito que daí surge pode merecer uma ou outra ótica de conclusão exegética. Dessa forma, se o contrato foi feito sob a égide do direito civil, tem-se que a exegese deve pender pela autonomia de vontade ou no sentido de que as partes são plenamente livres para pactuarem o que não for ilícito; portanto, o que fizeram, deve ser respeitado. Mas, se foi ele elaborado sob o mando do Direito do Trabalho, a vontade das partes deve ficar subsumida na vontade do Estado, pois para tal ramo do Direito predomina o dirigismo estatal, que se tem como superior em nome da proteção social. Explicando: as partes não podem se estabelecer condições contratuais. Estas são preestabelecidas pelo Estado, pois em tal sistema entende ele ser necessário para estabilizar tal tipo de relações. A premissa básica aí residente é de que o trabalho não tem força para se opor ao capital, estando no campo das relações humanas sempre subjugado. Portanto, a presença do Estado com suas leis mais cogentes e de proteção ao trabalho se constituiria no contrapeso para o atingimento de uma verdadeira justiça social. é a teoria da igualdade já exaltada por Rui Barbosa no início do século: a de se aquinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam. é o que também se chama de justiça social.
Se não se faz esta separação de sistemas, confusão pode vir a existir quando se tentar impor regras de um no outro, pois isto cria um hibridismo de difícil conciliação, uma vez que eles protegem planos jurídicos diametralmente opostos. Um, o indivíduo; o outro, o grupo social mais fraco.
Ocorre que o sistema de proteção social predominante no direito do trabalho é o mesmo do direito agrário. Ambos buscam justiça social.
Pois crédito rural, ou seja, dinheiro que o governo determina seja emprestado pelos estabelecimentos bancários de forma subsidiada para sustentar a atividade agrária, é um instituto de direito agrário, de autonomia plenamente admitida pela Constituição Federal, Art. 22, inciso I; portanto, tem ele toda a conotação de proteção social. Como a atividade bancária é considerada atividade de interesse público, é ela tutelada pelo Estado, de onde sofrem os bancos eterna intervenção. Ora, como crédito rural é preocupação estatal, estão os bancos necessariamente submetidos ao dirigismo do Estado, que por sua vez na busca de uma justiça social. Como este tema, se alinham outros como função social da propriedade, reforma agrária, desapropriação por interesse social, contratos de arrendamento e parcerias, usucapião especial, títulos de crédito rural, dentre tantos que povoam o Direito Agrário. Repetindo: as regras de autonomia de vontade no crédito rural são afastadas para dar lugar a ditames oficiais onde deve sempre predominar a proteção ao mais fraco. Assim, na interpretação de qualquer conflito envolvendo cédula rural, na qual a cédula rural pignoratícia é uma espécie, que é matéria de crédito rural, portanto de Direito Agrário, se deve ter presente a supremacia da interpretação social.
Assim, dentro do conceito de que crédito rural é instituto que tem como égide sistemática de proteção social, a interpretação que deve emanar das leis que o regulam é nesse sentido. Introduzir preceitos regulamentares, como por exemplo, resoluções do Banco Central, ou se tentar dar exegese diferenciada é conflituar o sistema, que sabidamente foi criado para proteger.
Para finalizar esta fundamentação, resumo que crédito rural tem um sistema de nítida proteção social e que, portanto, nele não se podem introduzir regras que primem pela autonomia de vontade ou ainda se procurem introduzir regulamentos que contrariem o sistema.
12.9. A inconstitucionalidade no crédito rural
Diz a Constituição Federal, no seu Art. 187, que instrumentos de crédito rural é matéria de política agrícola, que deve ser planejada e executada na forma da lei, mas, e aqui a importância, com a participação efetiva do setor de produção. Ora, isso significa dizer que qualquer emanação legislativa do Estado, quer seja por lei ou por resolução, precisa antes ter sofrido prévia discussão entre os interessados diretos, os produtores. Dessa forma, a estipulação feita pelo Conselho Monetário Nacional, pelo Banco Central ou até mesmo pelo banco emprestador, só tem validade se passar pelo crivo da prévia participação da parte interessada.
Se não há, as regras emanadas sofrem vício de origem, o que as torna sem legitimidade de obediência. Mais uma vez fica demonstrado que o dirigismo estatal, antes de se traduzir em linguagem jurídica, é ato político a necessitar de prévia conversação. Logo, nos termos da Constituição Federal, não existe o jus imperii.
12.10. Encargos do crédito rural
Juros – A remuneração do dinheiro emprestado é matéria de crédito rural, portanto, dentro do conceito legal do instituto que busca estimular, favorecer, incentivar, propiciar e desenvolver a atividade rural, nos termos do Art. 48 da Lei nº 8.171/91.
O ponto forte da questão está no limite de remuneração desse dinheiro tomado.
É bom que se repita que o crédito rural não é contrato de predomínio da manifestação de vontade, como ocorre nos contratos elaborados sob a égide do Direito Civil. Neles, o que existe é um forte dirigismo estatal impondo comandos legais e relativando vontades. Por essa ótica, nem mesmo as orientações daqueles órgãos que a lei determinou como gerentes dessa forma de empréstimo de dinheiro ao campo são livres. Elas deverão se pautar tendo sempre como norte a própria ideia de criação da lei, que é de estímulo, favorecimento, incentivo e desenvolvimento do setor de produção rural. Resolução ou ordem de serviços que fixem normas de remuneração do crédito rural são estruturalmente ilegais.
Logo, os juros remuneratórios não podem ficar ao arbítrio do agente emprestador ou dos órgãos que dirigem o crédito rural para fixá-los em percentuais que agridam a determinação de favorecimento imposta na lei. Como existe um parâmetro legal de no máximo 12% ao ano, é este o limite até onde pode ir a remuneração.
Por outro lado, a fixação de índice de juros superiores ao limite legal, através de resolução ou ordem de serviço do Conselho Monetário Nacional ou do Banco Central, padece de vício de inconstitucional de origem, pois não sofreu a prévia participação dos produtores interessados, e a matéria se insere no campo da política agrícola, nos exatos termos do Art. 187 da Constituição Federal.
Além disso, tenho que não se pode inserir na discussão o Art. 192, § 3º, da Constituição Federal, porque normas ordinárias limitadoras dos juros até 12% a.a. ainda estão plenamente em vigência, como são o Código Civil e o Decreto nº 22.626, de 07.04.33.
A capitalização dos juros é semestral, porque esta é a forma que melhor se adequa à sistemática protetiva do crédito rural que o legislador buscou conceituar. Ademais, a capitalização mensal ou anatocismo é cláusula proibida em lei, eis que proporciona um enriquecimento indevido numa atividade que o Estado sempre buscou proteger.
Aplica-se aos juros moratórios a mesma sustentação feita para os juros remuneratórios. Todavia, aqui há uma circunstância a merecer ponderação.
A incidência dos juros moratórios decorre do não-pagamento do crédito rural no prazo fixado no contrato e externado no título de crédito rural. Por conseguinte, sua cominação apenas se impõe na ausência de justa causa que impossibilite o devedor de pagar sua dívida rural. Exigir cláusulas contrárias à própria essência do crédito rural, como juros acima de 12% (doze por cento), correção monetária superior ao menor índice oficial, por exemplo, caracteriza pretensão injustificada do emprestador e, por outro lado, recusa justificada do tomador, elidindo a pretensão do encargo de juros moratórios.
O percentual, por força de dispositivo legal, é de 1% (um por cento) ao ano, nos termos do parágrafo único do Art. 5º do Decreto-Lei nº 167/67. Aqui, mais uma demonstração da ideia de benefício imposta pelo legislador, porquanto a periodicidade de incidência dos juros moratórios no Código Civil é mensal.
Correção monetária – Por uma pequena fração de tempo, chegou-se a pensar que a correção monetária não deveria incidir sobre o crédito rural. A sustentação desse ponto de vista tinha como fundamento a ausência de dispositivo legal regrando a matéria, enquanto os empréstimos para a atividade comercial e industrial traziam determinação legal expressa nesse sentido.
A questão já foi largamente superada, sob o entendimento de que correção monetária não é uma cláusula que se deva introduzir nos empréstimos agrários, mas uma consequência natural e ínsita a toda dívida de dinheiro. É certo que a sistemática do crédito rural é de proteção ao produtor rural. Todavia, essa proteção não significa doação ou mesmo mútuo, pois manter-se aquilo que a própria estrutura jurídica define como contrato oneroso, sem a incidência de correção dos valores emprestados, numa espiral inflacionária que muitas vezes em apenas um mês chega a corroer 50% (cinquenta por cento) do valor original, é doar essa importância ou mesmo emprestá-la gratuitamente. E isso nunca foi ideia do legislador.
A correção monetária, logo, é devida nesse tipo especial de contrato de empréstimo de dinheiro. As discussões que pairam agora é sobre o fator de correção a incidir sobre o valor tomado.
Pessoalmente, tenho entendido, em aulas ou em julgados, que, sendo o crédito rural um instituto criado pelo legislador com a intenção clara de regrar protetivamente o dinheiro emprestado ao produtor rural, inserindo-se essa proteção em toda sistemática do direito agrário, que é de cunho social, a correção monetária a incidir sobre o valor desse contrato é aquela de menor incidência dentre as oficialmente criadas. Essa exegese é consequência dos objetivos pretendidos buscar pelo legislador com a institucionalização do crédito rural quando, no Art. 48 da Lei nº 8.171/91, expressamente antecedeu a enumeração daqueles objetivos com formas verbais inequívocas de estimular, favorecer, incentivar, propiciar e desenvolver, que são expressões claras de proteção. Ora, e em se tratando de um contrato onde o objeto é emprestar dinheiro, só se estimula, favorece, incentiva ou propicia, fazendo incidir na devolução desse dinheiro cláusulas mais amenas do que aquelas usualmente encontradas nesse campo da atividade econômica. De outro lado, não haveria razão alguma para a tutela forte que o Estado legislador exerce nessa forma de contrato. Bastaria que o emprestador e o tomador do dinheiro diretamente pactuassem as cláusulas de correção.
Dessa forma, a correção do crédito rural fixada pelos índices da ANBID (Associação Nacional dos Bancos de Investimento e Desenvolvimento), TR (Taxa de Referência), caderneta de poupança, preço/produto, ou qualquer outra desse estilo, só deverá ser admitida se representar o menor índice oficialmente declarado.
A inclusão de qualquer uma dessas formas de correção monetária no contrato de crédito rural, instrumentalizada através de seus títulos de crédito, será passível de revisão diretamente pelas partes, ou através do Poder Judiciário. Não fora isso, se tal cláusula for inserida no contrato por determinação de qualquer órgão dirigente do crédito rural, como Conselho Monetário Nacional ou Banco Central, sem a prévia participação do setor de produção rural, sofre vício de inconstitucionalidade, pois, sendo matéria de política agrícola, a ouvida prévia dos diretamente envolvidos é condição de procedibilidade e, por consequência, de validade e eficácia dessa cláusula. O poder dos órgãos dirigentes do crédito rural não é absoluto e está condicionado ao mandamento do Art. 187, inciso I, da Constituição Federal.
Multa – A multa é penalização pelo não-pagamento do crédito rural. Evidentemente que sua incidência decorre da ausência de justa causa do tomador do dinheiro. Logo, se o agente emprestador vem a praticar ações atentatórias à estrutura do crédito rural, como correção monetária indevida, juros acima do limite legal, não pode ser beneficiado com a cobrança de multa, pois o não-pagamento tem justificativa.
Sendo devida a multa, o seu limite é de 10% (dez por cento) sobre o valor devido mais encargos, consoante o Art. 71 do Decreto-Lei nº 167/67.
Comissão de permanência – A remuneração incidente sobre o crédito rural após o seu vencimento é eufemisticamente chamada de comissão de permanência. Todavia, ela nada mais é do que a continuação dos juros remuneratórios. Logo, a comissão de permanência a ser cobrada não poderá ser superior a 12% (doze por cento).
O que não pode haver é a cumulação de juros remuneratórios e comissão de permanência, pois, aí, existiria duplicidade de cobrança de encargos sobre um mesmo fato.
Comissão de fiscalização – O agente emprestador do crédito rural pode cobrar do tomador do dinheiro as despesas efetivamente realizadas a título de fiscalização do empreendimento objeto do contrato. Naturalmente, que essas despesas só se tornam exigíveis se realizadas, o que impõe ao órgão emprestador o dever de comprová-las. A comissão de fiscalização pode ser fixada em índice percentual sobre o valor do empréstimo.
Despesas cartorárias – O crédito rural é instrumentalizado através dos títulos de crédito rural. Esses títulos possuem peculiaridades próprias, como o de consubstanciar em si mesmo as garantias do empréstimo. Como consequência, esses títulos necessitam de inscrição e averbação no Cartório do Registro de Imóveis para que seus efeitos atinjam terceiros. As despesas cartorárias resultantes dessas operações são de responsabilidade do tomador do empréstimo. O agente emprestador apenas as antecipa ao oficial do Registro de Imóveis e as debita na conta do tomador. No entanto, assume a responsabilidade de demonstrar que elas foram realizadas.
Outras despesas bancárias – O agente emprestador do dinheiro pode cobrar-se de toda e qualquer despesa efetuada na execução do crédito rural, quer de cunho administrativo, quer judicial.
PROAGRO – O Programa de Garantia de Atividade Agropecuária, ou PROAGRO, é uma espécie de seguro oficial criado pelo Governo Federal com o objetivo de exonerar o produtor rural das obrigações financeiras líquidas relativas ao crédito rural, cujo pagamento seja dificultado pela ocorrência de fenômenos naturais, pragas e doenças que atinjam bens, rebanhos e plantações. As obrigações financeiras líquidas resultam do valor emprestado menos os encargos financeiros, comissão de fiscalização, despesas cartorárias, ou qualquer outra despesa praticada para a efetivação do crédito rural.
O PROAGRO, dessa forma, é um contrato acessório de seguro ao crédito rural, em que o Governo Federal é o próprio segurador, e o agente emprestador, o corretor desse seguro.
O “prêmio” desse seguro especial, em geral de 1% (um por cento) do valor tomado mais encargos, é devido pelo tomador do empréstimo rural, cobrado pelo agente emprestador, que atua na condição de corretor e o repassa ao Banco Central. A indenização nunca é superior a 80% (oitenta por cento) do total devido.
É de se deixar claro que, como o contrato acessório do PROAGRO é feito diretamente com o Governo Federal, o produtor rural que quiser reivindicá-lo deverá se dirigir ao Segurador, administrativa ou judicialmente. Por conseguinte, não há possibilidade de compensação entre a dívida do crédito rural e a indenização do PROAGRO, até mesmo porque a execução dessa dívida ocorre na Justiça Comum, e a indenização do seguro, na Justiça Federal, pela categoria do réu envolvido.
13. Títulos de crédito rural e sua execução
13.1. Generalidades
Antes da assunção de responsabilidade pelo Estado para as coisas do campo, embrionada a partir de 1964, com a Emenda Constitucional nº 10, que possibilitou a edição do Estatuto da Terra, as relações jurídicas até então praticadas tinham revestimentos do Código Civil. Este, como se sabe, prima pela autonomia de vontade, calcado que é no sistema político e econômico chamado de neoliberalismo. Por ele, o exercício do direito de propriedade é máximo, permitindo que o homem proprietário rural use, goze e disponha de sua terra da forma que lhe for mais conveniente, pois esse é o conceito de ser dono de imóvel rural que o seu sistema incute.
Com a vigência do novo sistema, que retirou direitos do proprietário rural para lhe outorgar deveres, sob a égide da conceituação de que a terra tem uma função social, logo, por si só, tem deveres, especificamente no crédito rural, criou títulos com características nitidamente diferenciadas para servir de instrumento formal de empréstimos de dinheiro ao campo.
É diante desse fundo histórico-jurídico que se precisa entender a existência dos títulos de crédito rural e se permitir uma pertinente exegese.
13.2. Espécies de títulos de crédito rural
Os títulos de crédito rural podem ser agrupados em duas classes:
– títulos de crédito rural propriamente ditos e
– títulos de crédito rural assemelhados.
Os títulos de crédito rural propriamente ditos são aqueles que representam uma promessa de pagamento em dinheiro, com ou sem garantia real, e se originam diretamente do crédito rural, que é dinheiro oficialmente emprestado ao campo. Estes títulos de crédito são:
– cédula rural pignoratícia;
– cédula rural hipotecária;
– cédula rural pignoratícia e hipotecária e
– nota de crédito rural.
Os títulos de crédito rural assemelhados são aqueles que, embora não representem empréstimo de dinheiro oficial, servem para facilitar as relações lineares de crédito entre os produtores rurais, ou entre eles e suas cooperativas e terceiros. Estes títulos de créditos são:
– nota promissória rural;
– duplicata rural e
– cédula de produto rural.
13.3. Títulos de crédito rural propriamente ditos
Os títulos de crédito rural propriamente ditos têm características civil (não necessitam de protesto para constituição em mora, mas tampouco possibilitam pedido de falência), de liquidez (não ensejam dúvida quanto aos valores neles constantes, quer se constituam eles do valor líquido do empréstimo ou deste acrescido de correção monetária, juros remuneratórios, comissão de fiscalização e demais despesas), de certeza (representam a verdade de um negócio firmado entre as partes) e de exigibilidade (prescindem de qualquer condição para exigir o pronto pagamento).
Os títulos de crédito rural propriamente ditos possuem vários requisitos comuns:
– Denominação;
– Data e condições de pagamento; havendo prestações periódicas ou prorrogações de vencimentos, o acréscimo de nos termos da cláusula Forma de Pagamento abaixo, ou nos termos da cláusula Ajuste de Prorrogação abaixo;
– Nome do credor e cláusula à ordem;
– Valor do crédito deferido, lançado em algarismo e por extenso com indicação da finalidade ruralista a que se destina o financiamento concedido e a forma de sua utilização;
– Taxa dos juros a pagar, e da comissão de fiscalização, se houver, e tempo de seu pagamento;
– Praça de pagamento;
– Data e lugar da emissão;
– Assinatura do próprio punho do emitente ou de representante com poderes especiais.
O requisito denominação nos títulos de crédito propriamente ditos serve para demonstrar, já no primeiro momento, se o crédito rural foi lastreado ou não de garantia real. Assim, a denominação cédula rural pignoratícia demonstra que o empréstimo rural teve como garantia bens móveis passíveis de penhor, ou aqueles para os quais a lei estendeu essa conceituação; cédula rural hipotecária, que a garantia se constituiu de bens imóveis; cédula rural pignoratícia ou hipotecária, que a garantia é cumulada pelo penhor e hipoteca, e nota de crédito rural, que não existe qualquer garantia real cedularmente constituída.
O requisito data e condições de pagamento serve para fixar o momento normal que o título se torna exigível e a forma como poderá ser pago, se não houver vencimento antecipado por inadimplência de qualquer obrigação convencional ou legal praticada pelo emitente, ou pelo terceiro que prestou a garantia real. Possuindo os títulos de crédito uma formalidade mitigada, diferente da rigidez dos títulos de crédito de natureza cambial, permitem eles a inserção de formas parceladas de pagamento ou posterior aditamento, fixando agora pagamento em parcelas de uma dívida anteriormente unitária ou ainda prorrogações de vencimento estabelecidas diretamente entre o agente financiador e devedor, ou através de intervenções governamentais geradas pelo Conselho Monetário Nacional ou Banco Central, já que crédito rural é instituto de política agrária, que é ciência de inconstância. É de se deixar claro que os aditamentos aos títulos de crédito rural resultantes das intervenções governamentais só são admissíveis se forem expedidos em benefício do tomador do dinheiro. Modificações geradoras de mais obrigações atentam contra o princípio do direito adquirido.
Os acréscimos nos termos da cláusula Forma de Pagamento abaixo ou nos termos da cláusula Ajuste de Prorrogação abaixo servem exatamente para caracterizar as mudanças verificadas posteriormente nos títulos de crédito.
O requisito nome do credor e cláusula à ordem identifica o beneficiário da dívida; é a pessoa a quem obrigatoriamente deverá se dirigir o emitente do título na data do pagamento. Em geral, o credor é o agente financeiro emprestador do dinheiro. No entanto, nada impede que pela força da cláusula à ordem, ou endosso, o credor seja pessoa diferente daquela que emprestou o dinheiro, ou até mesmo indeterminado, no caso do título ter se tornado ao portador. Na hipótese, a dívida só poderá ser paga com a apresentação do título.
Quanto ao requisito valor do crédito deferido, lançado em algarismo e por extenso, com indicação da finalidade ruralista a que se destina o financiamento concedido e a forma de sua utilização, observa-se que o legislador procurou, no primeiro momento, fixar o quantum de dinheiro emprestado, prevalecendo o valor escrito ao valor numérico, no caso de dúvida. A lei não estabelece que o valor seja fixado exclusivamente em dinheiro, o que permite sua transformação em UFIRs, por exemplo, que é uma forma de manutenção corrigida do dinheiro.
Importância fundamental desse requisito é a indicação da finalidade para que se destina o financiamento e a forma de sua utilização. Vencendo o crédito rural encargos bem aquém dos geralmente fixados pelo mercado, dirigismo governamental a que estão vinculados os agentes financeiros, a) porque lidam com dinheiro oficial, ou b) porque são assim obrigados a agir quanto a dinheiro seu por imposição de uma concessão pública que exercem, naturalmente que a destinação desse dinheiro deveria também ser regrada. Por essa lógica, o empréstimo é feito para alguma atividade rural, circunstância que afasta a disponibilidade do tomador. O compromisso que o devedor assume com essa cláusula vincula o emprego do dinheiro a uma destinação específica. Seu desvio pode caracterizar inadimplência de obrigação convencional e ensejar a antecipação do vencimento do título. E o legislador foi mais além ao exigir a descrição completa da forma de como ele será utilizado.
Outro requisito comum aos títulos de crédito rural propriamente ditos é a fixação da taxa de juros a pagar, e da comissão de fiscalização, se houver, e o tempo de seu pagamento. Aqui, uma das questões mais discutidas na jurisprudência e na doutrina.
Com a devida vênia, e em repetição ao que já se disse em vários pontos desse curso, penso que há um claro desvio de interpretação ao se pretender como predominante a autonomia de vontade, resultante de uma liberdade contratual na fixação dos juros remuneratórios no crédito rural. Isso não existe! Toda a sistemática desse instituto, como de regra de todo direito agrário, é na busca de justiça social, que representa proteção de uma classe social em detrimento de outra. É a busca da igualdade pela desigualdade. Por conseguinte, o suprimento interpretativo, na ausência de regras expressas declarativas dessa proteção, deve ter essa tônica, e nunca enveredar para um sistema diametralmente oposto, que é a do direito civil. A mens legis não pode ser modificada. A dificuldade que uma inversão de tal jaez poderia oportunizar é a mesma de se tentar aplicar regras civilistas nas relações de trabalho.
Se o sistema social do direito agrário não se adequa a uma realidade neoliberal, que se revogue a lei. Nunca por via indireta de resoluções, ordens de serviços ou portaria, porque estas interpretações são derivadas, e como tais devem obedecer ao legislador que as criou. Mudar o Poder Executivo o sistema de proteção criado pelo Poder Legislativo é praticar desvio de poder e oportunizar o controle do ato administrativo assim emanado pelo Poder Judiciário.
A taxa de juros remuneratórios não poderá ser superior a 12% (doze por cento).
Seu critério de pagamento é semestral, sob pena de anatocismo.
Quanto à comissão de fiscalização, não basta ser pactuada, há necessidade de que efetivamente seja realizada, o que obriga o agente financeiro a demonstrá-la. Pactuada e não realizada, é cláusula indevida a permitir sua oposição de pagamento.
O requisito praça de pagamento fixa o lugar que o devedor deverá pagar a dívida, desobrigando-o de qualquer outro.
A data, o lugar da emissão e assinatura do título são requisitos comuns que complementam a perfeição formal do crédito rural. A data e o lugar de emissão projetam para o futuro o momento exato e local de criação do contrato de empréstimo de dinheiro rural. Já a assinatura pessoal ou por representante com poderes especiais o torna plenamente válido.
Além dos requisitos comuns acima analisados, existem requisitos específicos a cada um dos títulos de crédito rural propriamente ditos.
A cédula rural pignoratícia, por exemplo, deve conter a descrição dos bens vinculados em penhor, que se indicarão pela espécie, qualidade, quantidade, marca ou período de produção, se for o caso, além do local ou depósito em que os mesmos bens se encontrarem. Como uma das características dos títulos de crédito rural é a inserção direta da garantia dada ao empréstimo tomado, nada mais lógico que os bens que a constituem sejam discriminados com a maior abrangência possível, a fim de não deixar qualquer dúvida na sua individualização. Como garantes e depositados em mãos do próprio devedor ou do terceiro prestante da garantia real, eles precisam de completa identificação. Assim, por exemplo, se o penhor incidir sobre uma máquina colheitadeira, a descrição desse bem abrangerá tipo, ano de fabricação, número de chassi, motor, pintura, estado de conservação, capacidade da caçamba, tipos de pneus, e tudo o mais necessário para sua perfeita identidade.
Na cédula rural hipotecária, é o imóvel que deve ser descrito com indicação do nome, se houver, dimensões, confrontações, benfeitorias, títulos e data de aquisição e anotações (número, livro e folha) do registro imobiliário. Por conveniência das partes, esta descrição poderá ser substituída pela anexação do título de propriedade, referindo-se na cédula rural a este fato. Circunstância interessante é que os bens móveis adquiridos com o crédito rural incorporar-se-ão à garantia hipotecária, bem assim toda e qualquer benfeitoria realizada no imóvel.
Para a validade da garantia hipotecária, há necessidade do consentimento do outro cônjuge e de registro do Cartório de Registro de Imóveis, nos termos que a lei dos Registros Públicos dispuser, ficando revogadas as disposições dos arts. 30 a 41 do Decreto-Lei nº 167/67 a esse respeito. Porém, sua ausência invalida apenas a garantia, e não o contrato de empréstimo. Pode ser objeto de garantia qualquer imóvel, rural ou urbano.
A cédula rural pignoratícia e hipotecária conjuga a necessidade de descrição completa dos bens móveis passíveis de penhor, como na cédula rural pignoratícia exclusiva, com descrição do imóvel oferecido em hipoteca, como ocorre na cédula rural hipotecária. Pela prevalência desta última garantia, haverá necessidade de consentimento do outro cônjuge e registro no R.I.
A nota de crédito rural, por se destinar a empréstimos de pequena monta, não necessita de garantia real. Nada impede, contudo, que o agente emprestador se garanta com aval ou fiança e, neste caso, também com o consentimento do cônjuge do fiador.
13.5. A execução judicial dos títulos de crédito rural
A ação típica para cobrança dos títulos de crédito rural é o processo de execução. De quantia certa, quanto aos títulos que consignarem o pagamento em dinheiro, e de entrega de coisa certa, na execução da cédula de produto rural, eis que seu objeto é a entrega de produto rural.
Como independem de protesto para constituição em mora, esses títulos se tornam exigíveis após o vencimento, ou antecipadamente, pelo inadimplemento de condição legal ou contratual do devedor ou do terceiro garante.
De força executiva, o título de crédito rural propriamente dito (cédula rural pignoratícia, cédula rural hipotecária, cédula rural pignoratícia e hipotecária e a nota de crédito rural) necessita de liquidez, quanto aos valores pretendidos, e de certeza, quanto aos encargos acessórios que acompanham o próprio empréstimo de dinheiro. E condição de liquidez não se verifica pela tão-só anexação de extrato bancário onde se discriminem apenas os valores devidos e as datas de seus lançamentos. Há necessidade de que a discriminação de cada parcela cobrada seja completa, com a menção, por exemplo, do índice de correção monetária aplicado, o percentual de juros remuneratórios, moratórios ou de multa incidente sobre a dívida. Por outro lado, o requisito de certeza, quanto à cobrança da comissão de fiscalização, por exemplo, se consolida com a apresentação dos demonstrativos que provem a efetividade da fiscalização na atividade rural objeto do empréstimo de dinheiro ao campo. No caso de outras despesas, com os documentos que as demonstrem.
A necessidade de descrição completa dos elementos que incidiram sobre as parcelas líquidas cobradas, e prova das despesas realizadas, se impõe em cumprimento aos princípios constitucionais que asseguram, mesmo ao devedor, o respeito ao devido processo legal e ao direito de ampla defesa. Assim, não fornecendo o credor todos os dados de como chegou ao montante pretendido, a via processual é indevida e ilegal, e o devedor teve obstruído, logo no início, seu direito de defesa.
Como a força coativa da penhora sobre os bens do devedor decorre da estrutura formalmente perfeita do crédito, que por isso mesmo é protegido pelo Estado-Judiciário, é salutar que o juiz, ao receber uma inicial de processo de execução, examine a existência da efetiva liquidez da dívida em execução, e a certeza, através de outros documentos, das despesas pretendidas pelo credor. A providência é salutar, pois o Poder Judiciário colocará toda a sua força de mando em proteção do crédito que, por óbvio, precisará estar bem constituído, ou a coação pela penhora se transformará em ato ilegal. A providência judicial a ser determinada poderá se constituir na apresentação pelo credor dos dados necessários para permitir de forma matemática a perfeição dos valores cobrados. Ou no caso de despesas, a juntada de documentos que provem a sua realização.
O não-atendimento da diligência judicial pelo credor poderá ensejar a extinção do processo de execução.
Estando em condições a inicial de execução do título de crédito propriamente dito, a penhora deverá recair sobre bens que lhe serviram de garantia através do penhor ou da hipoteca, eis que a finalidade executiva da existência desses garantes é exatamente essa. A penhora imotivada sobre outros bens, de forma cumulativa ou mesmo isolada, pode caracterizar excesso de penhora passível de reparo oficial pelo juiz, ou por provocação do devedor, antes mesmo da fluição do prazo de defesa. Sua alegação deve ser considerada um mero incidente na execução.
Questão interessante pode ocorrer na existência de cumulação de garantias reais e pessoais, como por exemplo, no caso da execução da cédula rural pignoratícia também garantida por aval. Embora essa última garantia tenha contornos e autonomia própria, todavia ela deve ser analisada dentro do contexto do crédito rural. Portanto, a existência do penhor e a sua condição natural de já servir de garante impõe a preferência da penhora. Caso contrário, se os bens do avalista fossem os penhorados, incidiria sobre uma mesma dívida uma duplicidade de garantia e poderia se constituir num verdadeiro abuso de direito. Ademais, o devedor continuaria indevidamente na condição de depositário fiel, sem qualquer razão jurídica para tanto, uma vez que esse compromisso acessório não é indefinido, pois seu limite é o pagamento da dívida. A lógica indica que, neste caso, a solidariedade do aval é meramente sucessiva. O avalista pode, nessa circunstância, intervir no processo, antes mesmo do prazo de embargos, para pedir a preferência da penhora nos bens do devedor apenhados.
*Artigo publicado originalmente no Portal DireitoAgrário.com em 06/02/2022.
Wellington Pacheco Barros
ÁREAS DE ATUAÇÃO
Agrário • Ambiental • Administrativo • Parecerista jurídico